Chico Vartulli – Como a arte invadiu seu coração?
Thelma Innecco – Ótima pergunta, penso que o artista é invadido pela arte. Ela nos atravessa antes mesmo de sabermos nomear o que sentimos. Chega como afeto, pesquisa, compulsão, visão, memória, e a obra nasce dessa necessidade de dar forma a algo que insiste em existir e a resistir. Depois, ela se emancipa: deixa de pertencer ao artista e ganha vida própria.
Nas séries Corpos Sobre Corpos, por exemplo, as formas parecem vir de um tempo anterior, como memórias coletivas que exigem corpo, aliás, o “eu” é sobretudo corporal. Cada figura carrega uma verdade, uma emoção que solicita passagem.
Chico Vartulli – O que é criar para um artista?
Thelma Innecco – Criar é viver entre o devaneio e o rigor: imaginar mundos inexistentes e, ao mesmo tempo, moldá-los com atenção à forma, à estética, ao gesto. Criar é viver entre dois mundos: o Real e a Fantasia. A arte não preenche o vazio, mas pode cercá-lo com estilo.
No ateliê, tudo começa no corpo — o meu e o do barro. A matéria resiste, exige escuta, pede ser batida, cortada, alisada. É uma negociação silenciosa, sem hierarquia: apenas cumplicidade. Criar também é acolher memórias que não são só minhas, mas coletivas — camadas de vidas sobre vidas, corpos sobre corpos. Esse movimento me levou a importantes prêmios e a duas individuais marcantes, na Casa França-Brasil e no Galpão 7, em Belo Horizonte. Criar, para mim, é isso: um acontecimento, uma experiência real e intensa.

Chico Vartulli – Como mudar os rumos da vida com a arte?
Thelma Innecco – A arte sempre mudou o mundo — por isso tantas vezes é censurada. Ela não transforma por decreto, mas por desvio: desloca o olhar, desorganiza o habitual, cria fissuras onde o novo pode entrar. É resistência. Suspende a obrigação da produtividade e da obediência. Sem pretender mudar nada, muda tudo: altera o sensível, reordena a experiência, propõe novas maneiras de estar viva.
Chico Vartulli – Como nasceu a pousada Modernistas?
Thelma Innecco – O Modernistas nasceu muito antes de existir fisicamente. Nasceu numa viagem a Florença, quando eu e Lorena chegamos sem reserva, arrastando malas. Chovia muito e fazia frio, e nós batíamos de porta em porta até encontrarmos o Hotel Beatrice — um hotel familiar, acolhedor, onde a beleza estava no cotidiano de pessoas trabalhando com afeto. Eu ainda trabalhava na Caixa Econômica Federal, mas meu desejo verdadeiro já habitava outro lugar: meu ateliê que funcionava em casa, entre comidas e argilas, eu recebia clientes e construía, quase em silêncio, o início de uma vida futura. Aliás, o desejo está sempre alhures! Quando comprei um imóvel que parecia uma pequena igrejinha, reconheci ali a imagem insistente que me acompanhava há anos. Entrei no programa de demissão voluntária e segui o chamado. Assim nasceu o Modernistas — um espaço que encanta hóspedes, visitantes e todos que passam por ali.
Chico Vartulli – Como foi abrir uma galeria de arte em Santa Teresa?
Thelma Innecco – Foi trabalhoso, mas profundamente gratificante transformar a Galeria Modernistas em um ponto de referência nas artes visuais.
Santa Teresa é um bairro mágico, cheio de artistas, museus, vida boêmia, mas com poucas galerias. Com uma excelente assessoria e uma programação intensa — dez exposições por ano durante uma década — construímos uma presença sólida. Após a pandemia, mudamos o formato: passamos a trabalhar com nosso acervo e com artistas por obra, o que abriu espaço para mais vozes, mais linguagens, mais encontros.
Recebemos públicos de todo o Brasil e visitantes do mundo inteiro, atraídos pela experiência cultural singular do bairro — o bondinho, o casario, a vista. Seguimos fortalecendo a circulação da arte contemporânea e ampliando a visibilidade dos artistas. Nossa reputação se apoia na coerência curatorial, no acolhimento e na consistência de anos de trabalho. Isso é política cultural da melhor espécie. E isso, de fato, muda o mundo. Sou feliz por fazer essas escolhas.

Chico Vartulli – Como trabalhar por um mundo melhor como artista plástica?
Thelma Innecco – Penso que reorganizo o olhar do público sobre violência, pertencimento, memória. Um curador ajuda muito nesse processo, penso que ele age como um psicanalista voltado para o objeto artístico, sem poder emocional, mas mostrando possibilidades de interpretações e caminhos. Figura valiosa no sistema arte.
Em Uns Sobre os Outros, com curadoria de Ana Lobo, lido com a história como corpo — corpos atravessados, mortos, empilhados. É duro, mas profundamente humano. Sinto o público se emocionar, e isso transforma narrativas. Na série dos corações, alguns são ofertados em bandejas; outros, com artérias que parecem tentáculos, capturam e devolvem gestos. Com o âmago à mostra, recusam a obviedade e revelam o indizível. O barro, ancestral e frágil, é também escolha política: material simples, resistente, arqueológico. De forma sensível, acredito que transformo — o possível.
Chico Vartulli – Quais são seus projetos futuros?
Thelma Innecco – Tenho pensado intensamente nos próximos passos. Este novo ciclo de obras nasce num mundo que se move em velocidade vertiginosa, num campo de forças fascinante. Desejo realizar uma individual de fôlego — com múltiplos suportes, diálogos expográficos e uma curadoria que amarre corpo, memória e política. Quero ampliar a circulação da obra, especialmente em São Paulo, onde novas conversas podem surgir. Quero levar minha obra para as ruas e praças. E sigo fortalecendo o Modernistas como plataforma viva, um lugar onde artistas encontram rigor, cuidado e possibilidades. Produzir exposições desse ecossistema é parte do meu horizonte. Avanço com a certeza de que a arte, quando ganha forma, procura seus próprios caminhos. Eu apenas sigo abrindo passagem.
Fotos: Arquivo pessoal/Divulgação


