Chico Vartulli – Brasília e Rio de Janeiro marcaram sua formação pessoal e cultural de formas distintas. O contraste entre essas duas cidades — uma em construção e outra já consolidada historicamente — moldou sua visão de cultura e de pertencimento?
Amador Outerelo – Vim para Brasília aos quatro anos de idade, em 1971, quando meu pai, ainda funcionário, foi transferido. Dada a minha pouca idade, a mudança de residência não me afetou muito. Lembro-me de conversas de meus pais entre eles e com seus amigos reclamando da secura e da poeira que aqui havia — sem contar com a precariedade em matéria de comércio e lazer. E, para piorar, não havia apartamentos funcionais para a categoria de funcionário público que meu pai ocupava. Sendo assim, foi necessário que aguardássemos sua construção, morando no hotel. Fomos, então, para o que era considerado o Copacabana Palace de Brasília, o chamado “Brasília Palace Hotel” (que fechou em 1978 devido a um grande incêndio, retomado pelo construtor Paulo Octavio, nos anos 2000). Lá vivemos por um ano, até minha mãe não suportar mais, e passamos a esperar o resto do tempo necessário em um apartamento funcional da Marinha.
Acredito que, por ser uma terra de onde ninguém era originário — sempre ficávamos admirados quando alguém se dizia nascido em Brasília — todos tinham uma boa vontade e um desejo de pertencimento muito grande. Consequentemente, viver na cidade e pertencer à sociedade não foi nada muito difícil. Todos se sentiam um pouco saudosos de suas terras natais e conscientes de que era necessário criar novos laços para poder viver bem na cidade. Desta forma, eu e minha irmã — sendo três anos mais nova que eu — nos integramos muito bem e não sentimos nenhum tipo de melancolia da cidade de origem.
Engraçado que as coisas que se tornaram marcas registradas da cidade — o fato de ser um planalto, onde não existem montanhas e onde tudo é reto, e a secura do ar nos meses de inverno — são as que estão registradas bem fundo em minha alma e no meu senso estético. Poderia adicionar a elas o estilo modernista com o qual a cidade foi construída. Interessante que esse estilo arquitetônico é algo bem corriqueiro na visão de qualquer um que mora há anos na cidade ou que aqui nasceu. O que foi uma guinada estética no Brasil dos anos 50 e 60. Aqui é algo normal e até mesmo esperado.
Embora morando aqui desde os anos 70, sempre tive uma conexão com o Rio. Não havia um ano em que não fôssemos para a Cidade Maravilhosa e lá passássemos de um a dois meses durante o período de férias escolares. Na cidade, me surpreendia com tudo, mesmo acostumado, estava habituado com o clima, a arquitetura, a topografia e até a maneira como as ruas e bairros eram em Brasília. No Rio, sempre me admirava como a cidade era planejada, com a mistura de imóveis antigos e novos em suas ruas, com a oferta generosa de restaurantes, lojas, parques e até mesmo com o jeito descontraído e simpático do carioca.
Sendo assim, mesmo vindo do Rio e indo sempre o visitar, me sentia como um filho pródigo, que se considerava carioca, embora sempre se sentindo meio que perdido quando visitava a cidade.
Chico Vartulli – trocar uma carreira promissora no direito pela vida religiosa, o Amador experimentou uma ruptura rara e profunda. O que essa transição lhe ensinou sobre identidade, vocação e a relação entre fé e cultura?
Amador Outerelo – Nasci em uma família católica, estudei em um colégio católico e a religião sempre foi muito presente em minha vida. Sempre admirei as pessoas que, abnegadamente, deixavam suas vidas para se dedicar a um serviço ao outro. Na escola, sempre participei dos chamados “grupos jovens” e dos encontros religiosos que eram oferecidos para os adolescentes. Isso fazia parte da minha vida e tinha a mesma importância que qualquer outra atividade que eu fazia. Passada essa fase da adolescência, fiz vestibular na universidade pública de Brasília — a UnB — e fui aprovado para o curso de Direito. A advocacia era como que uma carreira pré-definida em minha vida, uma vez que meu pai é advogado e acredito que, tal como a carreira de médico, esta é meio que herdada dos pais. Sempre soube que seria advogado e nunca me questionei sobre meu interesse em sê-lo.
Passados os dois anos da graduação, ingressei em um escritório de advocacia muito importante como estagiário e, com disciplina e boa vontade, fui me preparando para, mais à frente, ser incluído no rol de seus advogados e, assim, levar a vida. Todavia, uma vez advogado, senti que o trabalho me isolou de meus amigos e me afastou da vida que até então vivia, com atividades culturais, viagens, etc. Foi então que, em um domingo no mês de janeiro, vi nos anúncios da comunidade no folheto de missa, uma propaganda de um curso de catequista que ocorreria em uma igreja local. Olhei para aquele anúncio e me senti compelido a participar.
Fui, então, ao curso e passei a dar aulas aos sábados na igreja e, gradualmente, minha participação foi cada vez mais premente. Sentia uma grande alegria e tinha um grande prazer em poder participar das atividades, tanto que, aos poucos, essa função foi tomando mais e mais espaço em minha vida, então comecei a questionar se não passaria a minha vida somente fazendo isso, ou seja, ensinando religião e vivendo em comunidade.
Tendo feito o discernimento vocacional, depois aceito, passei então a morar em uma comunidade religiosa. Entretanto, não foi uma coisa fácil. Vindo de um meio mais sofisticado e indo morar em uma favela, sofri muito com a falta de aceitação e a dificuldade de me encaixar em uma realidade completamente diferente da que vivia. Com as bênçãos de Nossa Senhora, consegui administrar e seguir para os anos seguintes de formação até chegar a me tornar um frade.
Passei de uma forma em que, após um tempo, não consegui suportar mais. Aos poucos, fui perdendo a confiança e, a partir daí, imaginei a possibilidade de voltar à vida anterior. Além do fato de não sentir-me realizado, isso me fez tomar a decisão de deixar a vida religiosa. Quando voltei, senti-me decepcionado comigo mesmo, mas, após algum tempo, percebi que havia tomado a decisão correta. Depois dessa experiência, tive a certeza de que não existe uma escala que determine se um valor é melhor ou pior, devemos olhar com atenção, o modo como fomos educados, e como aprendemos a valorizar desde crianças. Não há valores melhores ou piores, apenas distintos. Passei a prezar tudo o que aprendi em casa, bem como o que vivi em minhas experiências de vida. Juntei tudo e formei a pessoa que sou hoje.
Vocação vem do latim vocare, que quer dizer, chamamento. Somos chamados para muitas coisas na vida e não devemos acreditar que, tendo escolhido uma vocação entre tantas, estamos necessariamente fadados a segui-la para sempre. Acredito que temos a liberdade de deixar nossos corações decidirem como queremos viver e de ir atrás daquilo que ambicionamos. Nesse caminhar, vamos somando as novas experiências que vivemos ao que já somos e forjando o nosso “eu”. No fim, acho que a vocação primordial que temos é a de sermos felizes, e dela não podemos e nem devemos fugir. As outras são capítulos no livro de nossas vidas. A relação entre fé e arte é algo praticamente intrínseco. Desde os primórdios da Cristandade, quando ela ainda era vivenciada nas catacumbas da Roma Antiga, se desenhavam símbolos nas paredes e se pintavam imagens representando o Cristo e a Virgem Maria. A imagem sempre foi um meio muito efetivo de se representar algo para se fazer entender sem necessitar da escrita. Assim sendo, durante os séculos, os artistas foram criando meios — quer na pintura, quer na escultura — de representar conceitos de fé para que eles pudessem ser apresentados às pessoas. É interessante lembrar, por exemplo, que os vitrais nas igrejas e catedrais, com passagens da vida de Cristo e tanto do Novo quanto o Antigo Testamento, eram de uma maneira muito prática, uma forma de se catequizar o povo, que era analfabeto. A imagem era uma maneira funcional de se transmitir o que se queria.
Assim sendo, acredito que a fé e a arte são ligadas de uma maneira tão próxima que a arte seja a expressão física da fé e um artista, por seus dons transcendentais, capaz de nos transportar para um universo onírico todo particular, não seja uma pessoa dotada de inspiração divina.

Chico Vartulli – A sua mãe teve um papel decisivo no despertar para a arte e a literatura, transmitindo cultura de forma lúdica e entusiasmada. Na sua percepção, como a forma de transmitir conhecimento influencia a maturidade cultural de uma pessoa?
Amador Outerelo – É engraçado perceber que o conceito da beleza não é algo terminativo, conceituado, estatuído. O belo é algo que, a priori, nos comove, mexe com algo em nós e que nos faz sentir bem. Todavia, a categorização do belo é algo intrinsecamente ligado à nossa exposição ao que existe no mundo. É pela nossa visão (primeiramente) e depois pelo estudo (em seguida) que vamos codificando esse julgamento pessoal e vamos nos dando conta da existência de outros tantos belos que, com o passar do tempo e através de nosso contato com eles, vamos colocando em uma escala de valores.
Vamos a um exemplo:
Inicialmente, nos comove admirar uma imagem de um santo executada em madeira, mas sem muito entalhe e com as feições que remotamente nos lembram o personagem retratado. Não sabemos o porquê, mas sentimos uma atração por aquela peça. E essa atração nos faz julgá-la bela. Depois, com a pesquisa e o nosso contato com outras tantas imaginárias (em museus, exposições, casas de amigos, etc.), vamos nos dando conta da existência de outras imagens que possuem maior qualidade, que possuem feições melhor apuradas, cujos braços e as pernas estão, executados de uma maneira tal que vemos melhor os seus músculos e cujas vestes apresentam as dobras naturais de uma roupa. Julgamos, então, que elas têm maior valor do que a que primeiramente considerávamos bonita e, consequentemente, passamos a admirá-las ainda mais a anterior. E isso vai acontecendo repetidamente com o passar do tempo, de tal forma que, gradualmente, vamos conhecendo novas peças e automaticamente recategorizando tudo que se conhece.
O caminhar da Humanidade foi presenciando o nascimento de maneiras cada vez mais sofisticadas de execução de todo o tipo de forma de arte e, igualmente, as relações político-religiosas-sociais dos povos afloraram novas maneiras de se representar o belo, criando em si mesmas novos conceitos e maneiras através dos quais o homem passa a se ver, a ver o Sagrado e a pensar no que deseja para si e para a sociedade onde vive. O homem busca a racionalização dos sentidos. Quando se apaixona por algo, uma vez passado o encanto inicial, sente a necessidade de entender o motivo do sentimento. Como seres pensantes, não conseguimos ficar somente com a primeira impressão. E, para ir além, necessitamos de fontes de informação — livros, exposições, aulas, etc. A partir delas, vamos sofisticando o nosso senso estético e entendendo melhor o contexto onde tal beleza surgiu e quais são os seus constituintes. Isso, em última análise, nos leva a nos sentir mais seguros de nossas opiniões.
Chico Vartulli – Como colecionador, vê a si mesmo não como dono, mas como tutor das obras. De que maneira essa noção de transitoriedade no colecionismo dialoga com sua filosofia de vida e com a consciência da finitude humana?
Amador Outerelo – De pronto, ninguém gosta de enfrentar a ideia de que, em um momento não determinado, deixará de viver. É a única certeza desta vida; todavia, uma verdade da qual tentamos a todo custo olvidar.
O colecionador de arte, por estar o tempo todo envolvido com a história da humanidade (quando avalia os estilos e os períodos das peças com as quais está lidando), tem essa ideia de fluidez do tempo muito mais presente do que as demais pessoas. Todavia, sua prática como colecionado lhe faz passar a lidar com essa realidade de uma maneira muito mais serena. Passamos a nos dar conta de que ninguém é dono de nada — somente um possuidor e por um curto período de tempo — e que essas peças, que vieram de outras tantas vidas anteriores e de outros cenários (as casas e as vidas de seus antigos possuidores), viverão não se sabe quantas outras vidas em outros cenários mais.
Consequentemente, a gente passa a ter uma noção de felicidade: a de se viver entre coisas bonitas de uma maneira leve e desprendida. E ganhamos ainda mais, pois viver no meio da beleza sofistica o nosso senso estético e faz com que nossa vida ganhe novo sabor, nova cor e, certamente, muito mais qualidade.
Da vida não se leva nada a não ser a vida que se leva e, se no fim de nossa existência, podemos reconhecer que passamos nosso tempo em busca de e vivendo com o belo, ela certamente não terá sido em vão.

Chico Vartulli – Ao trocar e reposicionar obras em suas casas, fala-se da necessidade de que “a casa se comunique com as peças”. O que, para o colecionador, uma obra de arte precisa transmitir para merecer permanecer em determinado espaço?
Amador Outerelo – Você tem duas etapas, ou talvez três: primeiro, decidir o que quer colocar em um espaço, ou seja, como será a decoração do local. Logo após, você avalia a questão da dimensão das peças, quadros e mobiliário e estilo que terá cada uma dessas peças escolhidas. São ações que visam criar um “tom” à decoração e para que as peças dialoguem entre si, isto é, que uma não fique estranha próximo à outra. E, porque isso? Como os estilos que se seguem na história da arte geralmente são antagônicos, não se posicionam objetos de estilos sequenciados próximos. Finalmente, após ter planejado uma decoração e escolhido as peças — etapas racionais — vêm a etapa emocional: apreciar como ficaram colocadas juntas e deixar a emoção dizer se elas estão ou não em harmonia juntas.
Digo que as peças falam conosco; isto é, elas dizem se estão felizes juntas ou não. E isso não é uma questão meramente racional, ela vem da experiência de ver muitas decorações, museus e exposições. Sentir essa combinação é algo que vai além e que dá uma alma a um ambiente. É um “je ne sais quoi” que faz a diferença e nos comove.
Quantas vezes visitamos uma casa onde, teoricamente, tudo está lindo e bem pensado, mas, no fundo, nos faz sentir desconfortáveis? E, em contrapartida, por vezes visitamos outras casas onde a decoração tinha tudo para ser trágica e, inacreditavelmente, nos sentimos super bem? Como explicar? Isso é algo que não dá para explicar, é um valor estético que a prática vai nos dando.
Assim, sou da filosofia de que temos que deixar a questão teórica de lado uma vez que ela tenha sido pontuada e nos deixar levar pelo nosso senso estético, que fala ao nosso coração.
Chico Vartulli – O projeto de criar uma fundação para crianças, idosos e pessoas com câncer revela uma visão de legado que ultrapassa a posse material. Como o Amador enxerga a ligação entre arte, sensibilidade e responsabilidade social?
Amador Outerelo – Tendo em vista, como colecionador, a finitude de minha vida e, como cristão com formação familiar, a necessidade de ser solidário com o próximo, não posso ficar ausente ante tanta miséria que nosso povo vive.
O amante da arte tem por natureza, uma sensibilidade mais apurada e um olhar mais crítico ante o mundo que presencia. Assim, se Deus me deu e me dá tanto, o mínimo que posso fazer e partilhar essas bênçãos recebidas e criar meios onde os necessitados possam ser amparados. Tenho muita admiração pelas pessoas que puderam, no crepúsculo de suas vidas, organizar seus legados de forma que pudessem servir às próximas gerações. Há uma infinidade de meios para tanto, seja montando um museu, seja fazendo um grande leilão e, com a arrecadação, ajudar uma instituição a criar algo para o bem comum, onde possa usar do patrimônio para criar um organismo que se responsabilize por administrar os investimentos deixados, com os seus dividendos, manter ou colaborar com instituições que foquem nos períodos mais sensíveis da vida — a infância e a velhice — e na doença mais martirizante que existe, em minha opinião — o câncer.
Chico Vartulli – Ao longo da vida, o Amador Outerelo mergulhou profundamente nas expressões culturais que lhe despertaram interesse. Que conselho daria a quem busca desenvolver um olhar mais maduro e exigente diante da arte, sem perder o encanto da descoberta?
Amador Outerelo – Primeiramente, não se preocupe com nada. Deixe-se levar pelo coração. Vá visitar museus e exposições, veja filmes, viaje, tudo sem compromisso. Depois passe a determinar o que te agrada e o que não te agrada e se indague pelo motivo de um e de outro.
Após procurar informações que expliquem e esclareçam os estilos artísticos e falem sobre as
peças que te agradam. Hoje, além dos livros, há muito filmes e documentários na internet que
podem te ajudar a decifrar esse mundo.
Finalmente, nunca se feche a nada. Não seja preconceituoso com nada e se permita sempre se expor ao novo e buscar a beleza onde não imagina que existe.
Fotos: Arquivo pessoal/Divulgação


