Como diretor teatral, Marcelo Morato mostra que gosta de mergulhar nas complexidades humanas — e, com “VIDA ÚTIL”, ele faz isso com precisão e humor. Depois de temporadas marcantes, a peça retorna agora em novembro em curta temporada com apresentações em Niterói e na Tijuca, propondo um olhar ácido e sensível sobre o mundo do trabalho. Sob sua direção, o riso ganha um propósito: é ferramenta de reflexão, de desconforto, de transformação. “Rir de nós mesmos é mais difícil, mas necessário”, afirma o diretor. “É o riso que nos prepara para a mudança.”
Baseada no texto de Rafael Martins, “Vida Útil” investiga, através do bom humor, a saúde mental no ambiente profissional, revelando como os mecanismos de competição, vigilância e medo corroem a convivência e a própria noção de humanidade. A comédia coloca o espectador diante de situações cotidianas que poderiam acontecer em qualquer empresa ou ambiente de trabalho e, entre risadas, convida à autocrítica. Morato enxerga no humor uma lente poderosa para expor o que há de mais cruel e frágil nas relações de trabalho: “A comédia não deve anestesiar, mas nos fazer acordar”.
Nesta nova temporada, as apresentações acontecem em um final de semana em Niterói no Teatro da UFF (7 a 9 de novembro) e mais dois finais de semana na Tijuca no Teatro Municipal Ziembinski (14 a 23 de novembro). O elenco que Marcelo Morato dirige tem Julia Couto e Luciano Pontes, das primeiras montagens, e conta com a entrada de Lay Ribeiro e Lucas Miranda, além da nova assinatura de iluminação de Wilson Reiz. As mudanças, segundo o diretor, trouxeram um novo “equilíbrio cênico” e reafirmaram a força do trabalho colaborativo.
Com humor ácido e momentos de emoção sincera, “Vida Útil” vem conquistando o público, que se reconhece nas histórias de pressão, cansaço e resistência. Para Morato, essa identificação é o verdadeiro triunfo da montagem. “Esperamos que o espetáculo ajude as pessoas a repensar sua forma de viver e de trabalhar”, diz. “Que o riso seja o início de uma mudança, não o fim dela.”
Acompanhe a entrevista com o diretor Marcelo Morato, feita pelo jornalista Rodolfo Abreu.

Rodolfo Abreu: Qual o papel do humor, no caso dessa comédia, para falar de um assunto tão importante como saúde mental no trabalho, e achar esse equilíbrio através da sua direção?
Marcelo Morato: “Vida Útil” é uma peça que apresenta diversas questões referentes à maneira como trabalhamos, ou como alguns de nós trabalhamos, e do risco que constantemente corremos de nos adequarmos a formas não muito saudáveis de trabalhar, de nos relacionar, de conviver em ambientes de trabalho. Seja esse trabalho qual for. Pode ser um escritório, um hospital, uma fábrica, uma sala de aula. O autor, Rafael Martins, se dedicou a pensar e transformar esse material em uma obra palpitante viva, divertida, mas também reflexiva, com suas angústias e dissabores. Nós, criadores do espetáculo, também buscamos apresentar a vocês como essas relações afetam os corpos, as mentes, as atitudes dessas personagens que vivem sob pressão: precisam trabalhar, nem sempre estão trabalhando no que amam, mas no que conseguem, ou naquilo que lhes é favorável em algum grau, e precisam lidar com esse ambiente e companheiros que nem sempre lhes valorizam, lhes humanizam. Seus companheiros se tornam, muitas vezes, seus espiões, seus algozes, seus deduradores, seus inimigos, seus traidores. Em alguns momentos, surge uma luz no final do túnel. Dá para confiar na amizade sincera nesses ambientes em que os companheiros são concorrentes? O que pensa o chefe, o que espera de nós? Muitas vezes nem lidamos diretamente com os chefes. Depende do tamanho e da natureza da empresa. Aí temos que lidar com seu fantasma, ou a fantasia sobre essa autoridade, ou lidamos com seus assessores, assistentes, subalternos que vestem a capa da autoridade para nos reprimir e vigiar, e exercer seus meios mesquinhos de poder. É possível mudar esse esquema? É possível viver / trabalhar de forma mais saudável? É possível transformar essa realidade? São diversas as questões que o espetáculo traz. E faz isso com humor, com acidez, com emoção. Muitas vezes me recordei de algumas personagens em peças curtas de Anton Tchekhov, que adoecem, amarguram a si mesmos e aos outros, às vezes buscam alívio na violência ou na anestesia da bebida e dos barbitúricos. Mas que não deixam de ser divertidos, mordazes, muito reconhecíveis, pois são frágeis e demasiadamente humanos.
O papel do humor na peça é nos fazer enxergar essa realidade e rir de nós mesmos e de nossos mecanismos. É um riso meio amargo. Mas na comédia quase sempre é. Principalmente quando rimos de nós mesmos. Rir dos outros – principalmente das minorias – é cruel, é desumano. Mas rir de nós mesmos é muitas vezes mais difícil, mas é necessário. É o que nos humaniza. Traz alívio sempre? Nem sempre. Mas é um riso que se faz importante para nos preparar para a mudança ou desejá-la. Certa vez pedi demissão após assistir a uma comédia ácida, a um espetáculo de Denise Stoklos: “500 anos, um fax para Cristóvão Colombo”. Foi só o espetáculo que agiu assim sobre mim? Não, mas foi um sinal de alerta, foi a gota d’água. Ria e chorava ao mesmo tempo na plateia. Saindo dali, encontrei uma amiga que havia se formado comigo. Trocamos algumas palavras e ela reforçou o que eu estava necessitando fazer por mim. Cada história é muito pessoal. As prioridades são parecidas, mas nem sempre as mesmas. Cada obra de arte, seja um quadro, uma música, uma peça teatral, dialoga muito particularmente com seu receptor. Pode nos fazer refletir, chorar, rir, ou nos deixar indiferente. É sempre um convite… Como vamos recebê-lo ou lidar com ele é um mistério. Depende de muitos fatores. Mas a vida é fluxo.
As comédias ou os dramas não devem ter um efeito anestésico sobre nós. Devem nos estimular. Fazer com que a gente repense nossa forma de agir, nossa forma de aceitar, de lidar com nossa vida e com a vida dos outros. Isso às vezes nos atravessa como um ventinho, uma marola, às vezes é um furacão, um tsunami. Só vamos saber se vivenciarmos a experiência. Muitas vezes a tragédia é mais radical, só se resolve na morte. A comédia nos revela que precisamos acordar no dia seguinte e recomeçar. Mas nem sempre é apaziguadora.
Rodolfo Abreu: Como é a sua relação com o autor Rafael Martins, quando desenvolveu a direção da peça?
Marcelo Morato: Eu não conhecia Rafael Martins até ser apresentado à sua obra pelo Luciano Pontes, ator e produtor do espetáculo. Ainda não o conheço pessoalmente. Meu contato é por meio da dramaturgia dele, tentando compreender quais são suas inquietações e sua forma de se expressar teatralmente. Tento desvendar seus mecanismos, sua maneira ácida e bem-humorada de apresentar a ação da peça. Além de “Vida Útil”, li mais duas ou três de suas peças para entender sua linguagem, se havia uma constância ou uma variação de ferramentas teatrais empregadas por ele. Percebi, em “Vida Útil”, que ele desenvolve a ação, destrinchando-a em três modos de expressão das personagens, que ora dialogam, ora narram, ora deliram ou apresentam seus desejos mais íntimos. Achei que esse mecanismo de apresentar a ação por meio dos gêneros épico, lírico e dramático enriquecia e determinava como o autor queria que o público percebesse aquelas relações: não só captando o que era visível, mas também as inquietações, queixas, sonhos, delírios e doenças das personagens. E fomos em busca de uma maneira de expressar isso.

Rodolfo Abreu: Você falou que reviveu momentos angustiantes passados dentro de ambientes corporativos ao dirigir essa peça. Como transformou essa experiência pessoal durante o processo de direção do espetáculo?
Marcelo Morato: Acho que qualquer processo de trabalho pode vir a se tornar angustiante, ou mesmo tóxico. Eu até diria que qualquer tipo de relação, mesmo familiar, entre amigos ou amantes. Mas no caso de momentos angustiantes dentro de ambientes corporativos, quando você não é enxergado como indivíduo, mas é usado apenas como meio para atingir um fim, geralmente lucrativo para a empresa em que trabalha, ali começa a angústia, a aflição. Quando você se sente pouco valorizado, quando o seu prazer e conforto não são considerados, quando você é impedido até mesmo de satisfazer necessidades fisiológicas, quando o número de vezes que consegue ir ao banheiro é limitado, quando só tem quinze minutos para almoçar, quando é pressionado a atingir metas sobre-humanas, e para atingi-las, você precisa enganar, seja o cliente ou passar a frente de seu colega de trabalho, ou denunciar suas falhas, aí você já está sob forte pressão, e nem sempre percebe no ato. Às vezes, custa a perceber, pois você acaba naturalizando a tensão. Como se essa panela de pressão fosse a maneira “natural” de trabalho, como se não houvesse outras possibilidades mais saudáveis, mais equilibradas, menos desumanas. Em algumas experiências anteriores, eu percebia primeiro a tensão no outro: no tremor das mãos, nas unhas roídas, no riso forçado, nos xingamentos em voz baixa etc. E aí, depois percebia que eu também estava vivendo o mesmo drama. Talvez por ter uma paciência mais elástica, muitas vezes para mim, o sinal do mal-estar vinha da observação de como os meus pares estavam sendo atingidos. No ambiente corporativo, embora o “prazer de trabalhar” seja parte do discurso motivacional, não é incomum que o prazer seja visto como indesejável, ou sinal de preguiça ou procrastinação. É comum adiar o prazer do trabalhador, virá no final do expediente (principalmente se for o último dia de trabalho semanal), virá nas férias, virá na aposentadoria. Raramente, o prazer é pensado como um bom companheiro da jornada diária. Por isso, alguns trabalhos que costumam ser acompanhados pela sensação de prazer, como os trabalhos artísticos, são frequentemente mal interpretados como sinônimo de malandragem ou simplesmente diagnosticados como “isso não é trabalho”, seguindo uma linha de raciocínio que para ser trabalho, precisa ser um “desprazer”.
Munido de lembranças angustiantes que vivi em algumas situações de trabalho, e aqui preciso esclarecer que também nas artes vivi momentos tóxicos e angustiantes de labor, busquei evocar algumas daquelas sensações, que me ajudassem a recuperar aquela atmosfera, e também me levassem a não reproduzir, mesmo que inconscientemente, essa forma de pressionar os indivíduos que estavam sob minha direção. Busquei ouvi-los, estimulá-los a criar, a se sentir coautores do produto final, que suas percepções e assinaturas artísticas estivessem em cena, tanto quanto a minha. É assim que costumo trabalhar, quando dirijo. Não consigo acreditar que os atores estejam ali apenas para expressar o “meu” ponto de vista, ou tão somente o ponto de vista “do autor”, mas os atores estão em cena para também apresentar o seu ponto de vista. Senão, para mim, não há razão de se fazer teatro. E, a partir da estreia, para ouvirmos, percebermos e, talvez, absorvermos os variados, preciosos e inusitados pontos de vista do público. Em qualquer ambiente em que estou, tento ao máximo não ser abusivo, tóxico, invasivo. Tento trazer o bom-humor, a leveza, a valorização dos indivíduos que estão ali diante de mim. Não costumo tecer elogios gratuitos e constantes, mas tampouco desvalorizo as contribuições que eles trazem. Busco criar em conjunto, respeitando a individualidade alheia. Nem sempre é a maneira mais simples, mas é aquela na qual eu acredito.
Rodolfo Abreu: Você comentou que “a pandemia tem repensado as formas de trabalho” e realmente na época aconteceu um momento de reflexão. Mas a pandemia passou e praticamente todo mundo voltou ao presencial. O que acha que ficou desse período nas relações de trabalho?
Marcelo Morato: Após a pandemia da COVID-19 e de outras mudanças que repensaram as jornadas de trabalho, acho que passamos a perceber que podemos fazer diferente. Apesar do trabalho em casa ter levado também algumas pessoas a desrespeitar ou perder os limites sobre sua jornada diária, recebendo ou aceitando demandas que extrapolavam seu horário habitual, alguma coisa mudou na maneira como trabalhamos. Não sei dimensionar o tamanho ou a expansão dessa mudança, mas percebo que a forma como dedicamos nossas horas ao trabalho tem sido objeto de debate, análise e reforma social. Em todo o mundo, as pessoas, empregadores e empregados, têm refletido sobre os ambientes de trabalho, a necessidade de reuniões desgastantes e constantes, a possibilidade de parceiros de trabalho morarem em cidades / países diferentes. Isso afetou e alterou também o próprio fazer teatral, os processos educacionais, e boa parte das relações de trabalho em que não haja estrita necessidade da presença física dos trabalhadores. Disso poderão advir alguns desvios e enganos também. Não consigo muito bem entender uma consulta médica online, por exemplo. Ou, como recentemente foi divulgado, o atestado de óbito dado por fotografia do morto! Porém, acredito que a pandemia e alguns de seus desdobramentos trouxeram uma percepção diferente para os momentos presenciais, os encontros, o abraço, o desabafo durante o cafezinho. Fiz uma cirurgia há dois anos com um médico cuja secretária morava nos Estados Unidos, e tudo correu muito bem. Acho que as limitações impostas pela pandemia continuam nos fazendo questionar sobre jornada de trabalho etc. Claro que nem sempre as mudanças permaneceram, ou foram definidoras para novos ambientes de trabalho, mas acredito que nos fez enxergar outras possibilidades. Acho que a maneira como a geração Z se relaciona com o trabalho tem algo a ensinar a gerações anteriores que se matavam de trabalhar para depois receber uma aposentadoria irrisória ou ser sumariamente demitidos quando não tinham mais valor de mercado. Na peça, uma das personagens narra como seu pai foi demitido por ter simplesmente afrouxado a gravata. Ainda temos muito para aprender, repensar e evoluir como empregadores e empregados, conhecedores de seus direitos e deveres. E, claro, precisaremos de novas leis, feitas em colaboração com movimentos sindicais, com o auxílio de sociólogos, psicólogos, advogados, médicos, artistas etc. Os debates atuais sobre jornada 6 x 1 mostram que, num sistema capitalista, direitos e deveres ainda são vistos sob óticas muito distorcidas. É urgente essa mudança. Pessoas têm adoecido, morrido, perdido o prazer de viver. Pessoas têm tido uma existência inteira amargada por essas relações. Isso não é de hoje, é claro. Mas pode e deve mudar. Não é natural sofrer no trabalho. É também uma questão que afeta a economia da nação, com gastos e desgastes exagerados em médicos e advogados. Trata-se de empregar essa força vital não só no trabalho, mas também no lazer, nas relações familiares, na cultura, na arte. A desumanização no ambiente de trabalho também reflete no aumento de uso de drogas lícitas e ilícitas, nos distúrbios alimentares e digestivos, na violência urbana, e em diversos outros fatores que a isso estão vinculados.

Rodolfo Abreu: Esta nova temporada de “Vida Útil” no mês de novembro chega com elenco renovado, novos “colaboradores”. Como tem sido o processo com os atores novos Lay Ribeiro e Lucas Miranda? Há mudanças na montagem desta nova temporada?
Marcelo Morato: Tivemos para essa nova temporada de “Vida Útil” uma mudança significativa: num elenco pequeno de quatro atores, entrarem dois novos “colaboradores” é mudar 50% dos intérpretes. Eles são outros indivíduos, com seus tempos, interpretações, visões de mundo, experiências particulares, e, portanto, muda bastante porque trazem sua colaboração valorosa. Em termos de desenho da cena, marcas, ações, tivemos sim algumas alterações decorrentes dessa substituição. Estamos buscando dar atenção para alguns aspectos que considerei necessitarem de um cuidado especial, como algumas partituras físicas. E os outros dois atores que permaneceram da primeira temporada também amadureceram sua visão sobre a obra, também estão buscando se renovar diante desses novos companheiros. O mais desafiador é encontrar o novo equilíbrio. Muitas contribuições dos nossos antigos colaboradores, queridos e talentosos, permanecem porque depois de um tempo, a gente já não consegue separar muito bem o que foi uma criação do ator, o que foi determinado pela direção ou por qualquer outro fator. Mesmo que dois atores não estejam mais conosco, suas contribuições estão lá carimbadas. Eu acho isso bonito. É uma forma de expressar que ninguém é insubstituível, mas que também ninguém é totalmente substituível. Mesmo que os substitutos e substituídos não tenham se encontrado ou dialogado entre si, as interpretações acabam por ser um amálgama dos antigos e dos novos “colaboradores”. Para quem assistiu a primeira temporada, fica também o convite para que venham se divertir e surpreender com o novo elenco.
Lay Ribeiro e Lucas Miranda, assim como Luciano e Júlia que permaneceram, foram meus alunos de interpretação teatral na CAL. Eu já os conhecia, já sabia da sua potência, da sua dedicação, de alguns de seus recursos, mas a gente sempre se surpreende. Têm sido dedicados, leves, bons de trabalhar. E são artistas que querem deixar sua assinatura neste projeto. São diferentes dos anteriores, mas igualmente empenhados e envolvidos.
Outra mudança também nesta nova temporada será na assinatura da iluminação do espetáculo. Wilson Reiz, novo iluminador que veio se juntar à equipe, vai trazer sua interpretação particular da obra para nos iluminar, com um pensamento diferente e sua contribuição intransferível. É um profissional empenhado e com quem já fiz algumas parcerias.
Rodolfo Abreu: Como tem sido a repercussão da peça junto ao público nas temporadas anteriores? O que tem chegado a você?
Marcelo Morato: Quando estreamos a primeira temporada, não sabíamos a quem iria afetar ou interessar uma peça que se passava num ambiente tóxico de trabalho, mas confesso que me surpreendeu a quantidade de pessoas que se sentiram representadas pelo texto e pela encenação. Muitos vinham nos contar sobre os momentos difíceis que enfrentaram (no passado ou no presente) em seus empregos, e nas relações com colegas ou patrões, vinham falar sobre burnout, muitos se emocionavam, riam e choravam com a peça. Passei a pensar que o espetáculo seria um ótimo motivo para eles refletirem, recalcularem suas rotas, debaterem com colegas, repensarem seu comportamento, seja o de opressor ou oprimido. O fato de a peça ser uma comédia – ou tragicomédia – faz com que o público saia do teatro refletindo, mas ao mesmo tempo rindo de si mesmo, e com a possibilidade de operar uma mudança de comportamento. O espetáculo é mais uma ferramenta para repensar a forma como temos trabalhado, como temos nos relacionado, como temos nos “vingado”, como “envenenamos ou somos envenenados” nesses ambientes, como buscamos soluções, apoio, como desejamos viver. Não devemos divorciar radicalmente nosso trabalho de nossa vida. Seja seu trabalho qual for, seja sua vida como for, acredito que ambos podem entrar em colaboração, em harmonia. E se isso se mostrar impossível, cabe a você decidir como agir daqui para a frente.
Rodolfo Abreu: Algumas pessoas que ainda não assistiram podem ter uma ideia de que a peça é uma crítica a empresas ou aos chefes em geral – o que não é. O que tem a dizer sobre isso?
Marcelo Morato: Não é uma peça que coloca toda a culpa e responsabilidade num só prato da balança. Para haver equilíbrio é preciso contribuição, avaliação, análise, reflexão, compreensão, de ambos os lados. É também uma questão que envolve leis, horários, saúde pública, lazer, salário, plano de carreira. É um projeto de felicidade no trabalho. O texto de Rafael Martins aponta para essa possibilidade. Não traz soluções definitivas, nem paliativas. Ele diz, em algum grau: precisamos repensar essa forma de viver, de trabalhar, de sonhar, de conviver. Empregadores e empregados têm interesses distintos, com alguns pontos de convergência. Claro que depende muito de que tipo de empresa e de trabalho estamos tratando. O “chefe”, na peça, nem aparece. É uma abstração. Ele é percebido nas relações entre os funcionários, que muitas vezes reproduzem uns sobre os outros o que eles fantasiam sobre essa autoridade. O texto, em muitos momentos, se dedica a dar espaço aos pensamentos, aos delírios, às relações entre os funcionários, ao que eles cogitam, ao que sentem. Em algum grau, é uma peça sobre impressões. Impressões derivadas da vivência de uma realidade. Muitas vezes lidamos com “arremedos” de chefes, com seus assessores, que pretendem ser mais autoritários do que os próprios empregadores, porque calculam que, dessa forma, estão protegendo os interesses do patrão, ou porque isso é que se exige deles, ou porque assim garantem seu emprego ou seu posto. A peça também trata desse comportamento desviante. E nos leva a rir desses nossos mecanismos toscos. E expõe nossa fragilidade. A personagem, colaboradora 4, que está num posto um pouco acima dos outros três, se incomoda mais com o fato de que eles tenham combinado um chope no final do expediente de sexta-feira, do que mantenham uma relação tóxica e odiosa. Para ela é preferível que eles se odeiem do que vivam em harmonia. Porque assim ela considera que pode manipulá-los melhor. Se dimensionarmos isso para uma nação, vamos perceber que nossas inimizades e divergências expõem nossas convicções, mas também podem nos fragmentar, nos fragilizar, favorecendo e desmascarando os mecanismos de dominação e manipulação de um sistema desumano. São muitas relações que precisamos repensar. A peça se passa num escritório, mas poderia se passar num ambiente familiar, num hospital, nos bastidores do Vaticano, numa sala de aula ou de ensaio. As relações humanas é que estão sob análise. E, no caso de “Vida Útil”, o foco é, primordialmente, as relações humanas num ambiente de trabalho. Onde precisamos produzir, nos considerar úteis e indispensáveis. E somos levados a pensar na “utilidade” de nossa vida. Quem define isso? Útil para quem? Até quando e onde somos úteis? “Utilidade” é um bom parâmetro para se avaliar a vida? Ou é misturar conceitos que precisam ser repensados: o que é “vida” e o que é “útil”? O que podemos considerar útil para a vida?

Rodolfo Abreu: O que espera da nova temporada? Deixe um convite para o público.
Marcelo Morato: Esperamos que nessa nova temporada, continuemos em diálogo com o público. Que o espetáculo nos ajude a pensar, refletir, reelaborar nossa forma de viver e de trabalhar. E que também vocês se divirtam, se emocionem, e que possamos oferecer a todos uma forma de entretenimento que não seja um simples anestésico, mas que nos ajude a debater com a cidade, com a pólis, a nossa forma de atuar no mundo. Num mundo possível, próximo, que pode ir se alterando no dia-a-dia, na gentileza, nas pequenas lutas, no diálogo, no princípio de prazer. É utópico. Mas, em algum grau, toda forma de arte é. Toda forma de trabalho é.
Estaremos em Niterói, em três únicas apresentações no Teatro da UFF, que está reformado, confortável, e que oferece a niteroienses e a visitantes da cidade uma boa oportunidade de lazer. Aproveitem os bons teatros, as oportunidades que as cidades vos oferecem. Venham se divertir, rir, se emocionar com uma obra que abarca questões não tão habituais de se assistir no teatro. São muitas as peças sobre relações familiares, conjugais, amorosas. Mas não são tão frequentes peças que tratam da forma como trabalhamos, como nos relacionamos neste ambiente, seja ele qual for. Atualmente, vivemos todos nós a maior parte do nosso dia em locais de trabalho. Venham, portanto, refletir sobre isso e se divertir. Depois teremos temporada no Teatro Ziembinski, de duas semanas, na Tijuca. Também é uma boa oportunidade de prestigiar um teatro na zona norte, reformado, próximo ao metrô. Todos nós que moramos no Rio de Janeiro, sabemos da carência de casas de espetáculo na zona norte. Venham conhecer, se já não o conhecem, esse teatro na Tijuca, bairro tão grande e tão representativo do Rio de Janeiro! Estaremos esperando por vocês.
Acompanhe “VIDA ÚTIL” no instagram: @vidautil.teatro
SERVIÇO – VIDA ÚTIL
NITERÓI: Curta temporada: 7, 8 e 9 de novembro – sexta a domingo, 19h
Teatro da UFF / Centro de Artes UFF
R. Miguel de Frias, 9 – Icaraí, Niterói – RJ
Ingressos: https://www.guicheweb.com.br/pesquisa/centrodeartesuff
TIJUCA: Curta temporada: 14 a 23 de novembro – sextas e sábados 20h, domingos 19h
Teatro Municipal Ziembinski Rua Heitor Beltrão, s/n – Metrô S. Francisco Xavier
Ingressos: https://ingressosriocultura.com.br/riocultura/events
FICHA TÉCNICA
Texto: Rafael Martins
Direção: Marcelo Morato
Elenco: Julia Couto, Lay Ribeiro, Lucas Miranda e Luciano Pontes
Figurino: Wanderley Gomes
Cenografia: Marcelo Morato
Iluminação: Wilson Reis
Operação de Luz: Ana Parreiras
Trilha sonora: Diogo Perdigão
Operação de som: Diogo Perdigão
Assistência de direção: Luca Matteo
Assistência de produção: Pamela Salsa
Fotografia: André Garzuze
Filmagem: Tamo em Copa Filmes
Assessoria de Comunicação: Rodolfo Abreu / Interativa Doc
Realização: Terceiro Sinal Produções
Instagram: @vidautil.teatro



