O dramaturgo, ator e músico britânico David Persiva, autor da peça “Nós” (Us), inédita no Brasil, é apaixonado por escrever desde cedo. No início escrevia para si mesmo, quase como uma terapia. Ainda com a insegurança natural dos novatos, acabou tendo seu primeiro texto montado no teatro depois que uma amiga leu, adorou e decidiu produzir a peça “Nós” em Londres. Depois de montagens de sucesso na Inglaterra e na Índia, a peça estreia no Brasil pela primeira vez, ficando em cartaz de 29 de agosto até 28 de setembro no Teatro Futuros | Arte e Tecnologia, no Rio de Janeiro. A montagem brasileira tem direção de Daniel Dias da Silva e traz Andriu Freitas e Ricardo Beltrão protagonizando dois momentos cruciais da vida de um casal: a primeira meia e a última meia hora de seu relacionamento.
Animado com a encenação de sua peça no Brasil, Persiva concedeu entrevista exclusiva ao jornalista Rodolfo Abreu, onde compartilha os bastidores de sua escrita, fala sobre as vivências que o inspiraram a escrever a peça e comenta a alegria de ver o texto sendo reinventado por artistas brasileiros. Com honestidade e lucidez, David Persiva oferece pistas sobre como transformou experiências pessoais em material teatral, e como “Nós”tem provocado emoções diversas nas plateias por onde passa, revelando a força universal de uma história de amor com seus altos e baixos.

Mais do que uma história de casal, “Nós” é um espelho. Um palco onde cada espectador se vê — ou se revê — em algum momento. O começo, o fim, ou aquele espaço nebuloso entre esses dois momentos. O tempo é um grande vilão ou um cúmplice das relações humanas? Nas palavras de Persiva, “não escrevi o meio da relação, mas de alguma forma o público vê esse meio mesmo assim.” Talvez porque esse vazio seja exatamente onde cabem todos nós.
Acompanhe a entrevista.
Rodolfo Abreu: “Nós” é sua estreia como dramaturgo. O que te motivou a escrever para o teatro? De onde veio o impulso criativo por trás dessa peça?
David Persiva: Não sei se fui motivado especificamente a escrever para o teatro. Eu só queria escrever. Escrevo, para mim mesmo, desde os 20 anos — talvez antes. Escrever é uma alegria e um desafio. Terminar um texto é como tentar montar um quebra-cabeça de mil peças dentro da sua cabeça que só você consegue ver. E há uma satisfação enorme em descobrir onde cada peça se encaixa.
Mas eu nunca tive a intenção de fazer algo com o que escrevia. Tinha muito medo do que as pessoas iam achar — que fosse ruim, que rissem de mim. (O PERSONAGEM diz isso na peça.) Mas um dia uma amiga leu “Us“ (Nós) e me disse que ia montá-la no teatro e que eu não poderia impedir. Fiquei apavorado. Mas serei eternamente grato por ela ter feito isso.
Essa peça, como tudo o que eu escrevo, começou como uma terapia pessoal. Tudo o que escrevo precisa ser, antes de tudo, para mim mesmo — algo que quero explorar ou discutir, em particular, comigo. Para mim, o ato de escrever é uma conversa com meus próprios pensamentos; uma chance de escutá-los, colocá-los no papel e relê-los. É uma discussão. É conflito.
“Nós” nasceu no fim de um relacionamento — era eu tentando entender o que deu errado. Foi culpa minha? Por que aquela pessoa me parecia tão difícil? Por que tudo sempre acabava? Eu era naturalmente ruim em relacionamentos? Ou o verdadeiro problema era o ambiente ao redor de uma relação?
Porque relacionamentos não são como o amor que a gente aprende nos filmes da Disney — aquele “felizes para sempre”. Trata-se mais de como manter acesas as faíscas da primeira noite. E se isso é mesmo possível. E como sustentar o romance diante da vida cotidiana: compras, contas, impostos, aluguel, dinheiro, papel higiênico, louça, roupa suja… Essa foi a principal pergunta que me propus a explorar.
“Nós” fala sobre o amor moderno — urbano, vigiado, compartilhado, cheio de histórias, exausto, convivido — e o que acontece quando ele não corresponde às expectativas.

Rodolfo Abreu: A peça tem uma estrutura muito única – ela examina a primeira e a última meia hora de um relacionamento. Por que você escolheu esse formato e o que ele revela sobre o tempo nas relações humanas?
David Persiva: O tempo não é longo nem curto. Ele é constante. Ele simplesmente passa. É teimoso e indiferente. Às vezes parece dolorosamente lento. Outras vezes, parece que nunca há tempo suficiente. Na minha peça, acho que os personagens experimentam os dois. Na primeira noite, o tempo voa. Na última, ele escorre. Mas o tempo pode assumir outra forma — algo que aprendi nos meus próprios relacionamentos. O tempo pode parecer que não passa, se você se recusar a crescer. Você vai continuar se vendo no mesmo lugar, ano após ano, a menos que admita seus erros e aprenda com eles.
Foi assim que encontrei a estrutura. Ou melhor — foi ela que me encontrou. Eu não a escolhi. Eu a vivi. Foi moldada por uma série de relacionamentos fracassados. E depois por novos.
Entre esses relacionamentos, eu voltava a escrever para refletir. Continuava encontrando a peça inacabada — e escrevia mais. Mas aí conhecia alguém novo e, naturalmente, abandonava o passado triste e trágico em nome da diversão, da vida, do futuro. Até que esse futuro virava passado de novo. E eu voltava ao fim. Ou ao começo? De qualquer forma, eu estava novamente entre as coisas, sozinho, sem nada a fazer além de refletir e sofrer.
Numa noite em particular, logo após o término final, sentei, olhei na gaveta e encontrei a peça inacabada. Li e percebi que era de anos atrás — e, mesmo assim, poderia ter sido escrita naquela noite. Meus problemas eram os mesmos. Eu era o mesmo. O tempo tinha parado completamente. E, ainda assim, eu estava mais velho. Pensei: “É melhor terminar essa porra de peça antes que eu conheça outra pessoa, me distraia e cometa os mesmos erros de novo.” Então terminei.
O rascunho atual da peça foi escrito naquela mesma noite — de uma vez só, direto, das 23h às 5h. Minha ex tinha ido embora. O apartamento estava vazio. Esqueci de comprar papel higiênico e as lojas estavam fechadas. A única coisa na geladeira era o leite de soja dela. Escrevi durante a noite até o amanhecer. Comecei pelo fim e terminei no começo. Bebi duas cervejas enquanto escrevia.
Rodolfo Abreu: A montagem brasileira de “Nós” traz um casal masculino no centro da narrativa — algo novo em relação a produções anteriores. Como você reagiu a essa adaptação? Acha que isso transforma a experiência do público de alguma forma?
David Persiva: Fiquei totalmente empolgado com a escolha da montagem brasileira em colocar um casal masculino. A minha versão dos sonhos dessa peça seria que ela fosse encenada por casais diferentes a cada noite — um homem e uma mulher, dois homens, duas mulheres, etc. Afinal, quando escrevi a peça, os personagens se chamavam apenas A e B. Eles não têm nomes (e ainda não têm). Qualquer pessoa pode interpretar esses papéis.
A peça captura uma atmosfera, ou momentos, que muitas pessoas parecem já ter vivido — independentemente de idade, etnia, origem cultural, gênero ou sexualidade. Você não pode rotular o amor. Ele não tem gênero. É uma emoção que vive em todo mundo.
Pra provar isso, aqui vai uma história:
Durante a temporada em Londres, uma noite, depois da peça, um cara me escreveu e disse:
“Vi sua peça — preciso confessar. Chorei. As frases do seu personagem foram exatamente as que eu usei no meu relacionamento. É louco o quanto me identifiquei. Sou gay. Meu parceiro também estava comigo. A visão dele sobre nossos problemas é diferente. A gente tinha brigado antes do espetáculo. A peça fez com que a gente chegasse em casa e conversasse pela primeira vez em meses. Choramos juntos e nos abraçamos. Avançamos. Isso ajudou a gente a sentir que não estamos sozinhos. Que há luz no nosso futuro. Cara, obrigado por isso.”
Rodolfo Abreu: Um dos elogios mais frequentes à peça é sua universalidade — embora seja baseada em uma história profundamente pessoal, parece tocar um ponto comum em muitas pessoas. Como você vê essa ressonância com diferentes públicos?
David Persiva: As pessoas muitas vezes acham que a peça é um relato direto de um dos meus relacionamentos. Não é. Ela nasceu das minhas experiências, sim — mas os personagens não são cópias diretas de ninguém. São composições. Híbridos. Inspirados em mim, em minhas exs, e também nos dois lados do meu próprio cérebro.
A peça também é um debate entre esses dois lados. O Homem é a parte mais datada, tradicional e cínica da minha mente — mais resistente à mudança. A Mulher é o lado mais progressista, curioso, esperançoso, voltado para o futuro. O Homem cria a guerra. A Mulher tenta acabar com ela.
Acho que é por isso que as pessoas se identificam — porque todos nós temos essas duas vozes dentro da gente. Todos somos contraditórios. Todos queremos amar e ser amados. Somos generosos, gentis, confiantes, calorosos. Mas também somos medrosos, bagunçados, cansados e orgulhosos. Jung provavelmente chamaria isso de equilíbrio entre energias masculinas e femininas. Eu só acho que é ser humano. É também por isso que os personagens não têm nomes. O título Us (Nós) não significa só o casal no palco. Significa todos nós.

5. Você atuou na produção londrina de “Nós”. Como foi interpretar um personagem que você mesmo escreveu? Isso mudou ou reafirmou algo no texto para você?
David Persiva: Nunca planejei interpretar o papel. Aconteceu durante as audições — eu estava lendo com as atrizes que faziam o teste para o papel da Mulher, e o diretor e a produtora disseram: “Você tem que fazer.”
Fiquei com medo. Mas aceitei. (Também porque sairia mais barato do que contratar outro ator 😂) Foi algo bem exposto, para ser honesto. Escrever em particular é uma coisa — dizer aquilo numa sala cheia de estranhos é algo completamente diferente. Mas acho que isso me deixou mais corajoso como escritor. Eu precisava bancar as palavras que escrevi. Colocar meu dinheiro onde pus minha boca. E também aprendi coisas que não esperava. Descobri que existe uma outra peça dentro do texto — aquela que vive nas entrelinhas. Nas pausas. No tom. Nos olhares. No que não é dito. Você pode escrever algo achando que tem um significado, mas ao dizer aquilo em voz alta, com outra pessoa, de repente pode revelar algo totalmente diferente. Isso foi empolgante. E assustador. Mas principalmente empolgante.
Rodolfo Abreu: A peça já foi apresentada em Londres e Mumbai, e agora chega ao Brasil. Que diferenças — ou semelhanças — você notou entre essas culturas? Como o público tem reagido?
David Persiva: Não posso responder plenamente, pois infelizmente não estive presente na produção em Mumbai — e talvez não consiga ir ao Brasil. Nunca estive em nenhum dos dois países. Mas há algo bonito em não estar presente também. É estranho simplesmente entregar a peça e deixar ir. Confiar. Essa peça é minha, sim — mas essa produção não é. E a nova companhia vai encontrar coisas diferentes nela. Coisas que talvez eu nem tenha notado. Eles vão se ver na peça. Ou ver sua versão dela. Isso é lindo. Parece que a peça ganhou uma nova vida, em outro lugar. Sou imensamente grato.

Rodolfo Abreu: O público é conduzido por dois momentos opostos: o início do amor no primeiro encontro do casal, e o confronto de conflitos no final da relação. Que tipo de retorno você recebeu do público sobre essa jornada emocional?
David Persiva: As pessoas dizem que se veem na peça. Dizem que parece que eu instalei uma câmera escondida na casa delas e escrevi tudo. Elas se sentem expostas. Eu não esperava isso — mas fiquei positivamente surpreso. Porque, pelo menos, elas estavam envolvidas.
Na escola de teatro, um grande dramaturgo que me orientou — Douglas Maxwell (procurem por ele, é incrível) — deu uma aula e disse: “As pessoas não vão ao teatro para ver uma história e personagens. Elas vão para ver a si mesmas. Querem saber como tudo termina — para elas.”
Isso sempre ficou comigo.
Acho que a estrutura da peça permite que o público se projete nela e preencha as lacunas. Eu não escrevi o meio da relação — mas, de alguma forma, eles veem esse meio mesmo assim. Não é legal?
Rodolfo Abreu: Você transita com fluidez entre teatro, TV, cinema e música. Como essas formas influenciam seu processo criativo? E onde você se sente mais à vontade criativamente?
David Persiva: Escrevo bastante — músicas, roteiros, trechos de diálogos — mais como hobby. Mas tudo isso são formas de contar histórias. E, para mim, trata-se de encontrar o melhor lar para a história que quero contar. Algumas ideias só precisam de alguns minutos — e acabam virando músicas. Outras exigem locais ou visuais diferentes, que só o cinema pode oferecer. O formato depende de quanto tempo a história precisa — e qual estrutura melhor serve à ideia.
“Nós” era puro diálogo — dois personagens descobrindo coisas juntos. E sempre fez sentido que fosse uma peça. Quanto à minha música — não há música na peça, mas uso muito do que aprendi compondo. Penso em estrutura, ritmo, cadência. Há momentos na peça que são silenciosos e lentos, e outros que são intensos e rápidos. Então, nesse sentido, há uma musicalidade no diálogo e na forma da peça.
(Pequena autopromoção): Se alguém se interessar, escrevi e gravei um álbum enquanto escrevia “Nós”. Chama-se Lessons. Não está diretamente ligado à peça, mas compartilha muitos dos mesmos temas. Foi escrito no mesmo estado de espírito. Está no Spotify, Apple Music e nas principais plataformas.
Link para Lessons: https://open.spotify.com/intl-pt/album/1jP168ZzXzFXSDQ6ep4WLv

Rodolfo Abreu: Em quais projetos você está trabalhando atualmente?
David Persiva: Desde a peça, tenho trabalhado com TV e cinema. Atualmente estou desenvolvendo uma série de comédia dramática de meia hora com a Clapperboard TV (Reino Unido). Também trabalhei recentemente em salas de roteiristas para uma nova série do Channel 4 (Reino Unido) e para um grande projeto de desenvolvimento da Fox (EUA).
Este ano, escrevi um episódio da série britânica The Teacher (temporada 3), que está sendo filmada na Espanha e será lançada em 2026.
No cinema, trabalhei na comédia How To Make Her Leave, estrelada por John Cleese, produzida pela Anna Barbara Films em Los Angeles — também prevista para este ano.
Agora, estou finalizando uma nova ideia de série de comédia sombria que me anima muito. E também estou quase pronto para finalmente escrever minha próxima peça. Ela já está dentro de mim há um tempo. Só faltava tempo.
Rodolfo Abreu: Qual mensagem você espera que “Nós” deixe para o público?
David Persiva: Espero que percebam que a peça termina exatamente no começo — e que isso tem um motivo. Fiz isso intencionalmente, porque queria reconhecer que, apesar de ser algo que pode causar tanta dor, o amor é a única coisa da qual nos levantamos e tentamos de novo. E acho isso incrível. Essa coragem. Essa resiliência. Essa esperança!
Se fosse qualquer outra coisa, provavelmente desistiríamos. Se você subisse numa árvore e caísse, não subiria de novo. Se investisse todo seu dinheiro na bolsa e perdesse, provavelmente desistiria. Mas, com o amor, a gente continua. Continua a colocar o coração na linha, arriscar tudo. E acho que a peça celebra isso — a coragem silenciosa de quem não desiste de encontrar o amor.
Rodolfo Abreu: Como você espera que o público brasileiro se conecte com “Nós”? Há alguma mensagem ou sensação específica que gostaria de deixar para eles?
David Persiva: Espero que levem consigo a sensação de que, mesmo sendo uma peça escrita por um completo estranho — um cara inglês a milhares de quilômetros de distância —, ela fala uma linguagem que todos nós entendemos: o amor.
O amor não precisa ser traduzido. Todos reconhecemos a alegria da conexão — e a dor quando ela se vai. Quando as luzes se apagam, o público está no escuro, como estranhos. (Literalmente, já que há uma cena que é feita na escuridão total, oferecendo ao público a chance de apenas ouvir, invisível.) Mas, ao final da peça, quando as luzes se acendem, espero que tenham percebido que têm mais em comum do que imaginavam.
Quero contar histórias sobre temas universais — vida, amor, família, amizade, morte, luto. Coisas que nos lembram que, por baixo de todas as nossas diferenças, ainda compartilhamos muito. Verdades universais e silenciosas que nos fazem humanos. O coração partido é uma dessas coisas. Mas ele não existe sem o amor. Esse é o terreno comum. É aí que nasce a conexão. E é isso que a peça homenageia — a coragem de continuar tentando.

Acompanhe a peça “Nós”: @nos.peca
“NÓS” de David Persiva
De 29 de agosto a 28 de setembro (sexta a domingo, às 19h)
Teatro Futuros | Futuros – Arte e Tecnologia
Rua Dois de Dezembro, 63 – Flamengo, Rio de Janeiro – RJ
Ingressos via Sympla
Adulto – R$ 60,00 (Inteira) | R$ 30,00 (Meia)
Classificação indicativa: 14 anos | Duração: 60 minutos

Entrevista por: Rodolfo Abreu (@rodolfoabreu)
Imagens: Divulgação