A modernidade é um processo complexo, envolvendo inúmeros paradoxos e contradições.
Em tempos pretéritos, lá nos seiscentos, Pernambuco esteve sob o domínio dos holandeses. Eles participaram do empreendimento açucareiro na América Portuguesa desde o início. A Companhia das Índias Ocidentais, empresa holandesa, não queria ficar de fora do rentável comércio do açúcar e resolveu fincar seus pés por aqui. Pernambuco era o maior centro produtor de açúcar da colônia e do mundo, portanto, área de interesses de poder e de conflitos pelo seu domínio. Os holandeses eram homens modernos, com uma mentalidade comercial, voltada para o lucro, inseridos no processo de globalização dos séculos XVI e XVII, que invadiram e passaram a dominar a região.
Foi nesse contexto que emergiu a figura de Anna Paes, personagem feminina que ganha centralidade durante o período do domínio batavo, e é resgatada pela produção cênica Babilônia Tropical: a Nostalgia do Açúcar, que estreou no teatro do CCBB RIO1 no dia 30.08.2023, a seguir ter passado por Belo Horizonte e Brasília.
O texto de Marcus Damigo, também diretor, parte de um bilhete escrito por Anna Paes para o conde Maurício de Nassau lhe ofertando seis caixas de açúcar. E, daí a trama segue para refletir o lugar que aquela mulher ocupou naquela sociedade e as contradições que ela viveu inserida nesse processo de modernização, violento, excludente e racista. Na peça, a atriz Carol Duarte interpreta a personagem de forma bastante segura e firme. Não deixa a peteca cair em momento algum.
Convém lembrar que o modelo da colonização empreendida apoiou-se na grande propriedade rural monocultora, a da cana-de-açúcar, e no trabalho escravo dos negros africanos. Estes eram as mãos e os pés dos senhores-de-engenho.
Anna Paes era uma mulher que sabia ler e escrever, fato raro na época, uma vez que a mulher era projetada para ser do lar e acompanhar o esposo na ida às missas ou ocasiões públicas. Inicialmente era católica, mas depois se tornou calvinista. Se casou várias vezes. Era proprietária de um engenho, sendo rica e possuidora de farto cabedal. E, proprietária de escravos, utilizando-os como mão-de-obra. Portanto, levando em consideração a condição feminina naquela época, ela gozava de uma liberdade bastante considerável e tinha poder e status social.
Na Olinda de Anna Paes, os corpos negros foram escravizados, trazidos da África pelos comerciantes, comércio altamente lucrativo. E, ao chegar, por aqui, tornavam-se propriedade dos seus senhores. Escravo era um bem, uma coisa. Eram submetidos aos mais duros trabalhos forçados e maus tratos.
Para os seus senhores, os escravos não tinham voz. Mas, não podemos olhá-los somente por esse viés. Eles resistiam também. Fugiam, tocavam fogo nos engenhos, praticavam seus rituais religiosos, formavam quilombos, organizam religiões. Gritavam contra os maus tratos também.
O texto de Damigo nos leva a refletir se hoje, de fato, os corpos negros estão livres. A Lei Áurea libertou. Mas, de fato, foi o fim da escravidão? Ele nos leva a realizar uma reflexão sobre os tempos contemporâneos. A mentalidade escravocrata deixou raízes profundas na sociedade brasileira, e ela ainda permanece viva em diversas atitudes racistas e preconceituosas que acontecem no nosso dia-a-dia. Com certeza, a vida dos negros e negras no engenho era sofrida e dolorosa.
Além de Carol Duarte no papel de Anna Paes, o elenco é constituído por jovens atores como Jamile Cazumbá, Erni Panzo e Leonardo Ventura, que mantém a qualidade do espetáculo. Na dramaturgia Damigo conta com a colaboração de Ermi Panzo.
O cenário é bem criativo. Ele é constituído por uma cadeira e uma grande mesa. Ao redor desta há um amontoado de papéis brancos amassados que constituem as inúmeras tentativas de Anna Paes redigir o bilhete para o Conde de Nassau. Há também projeções complementando a cenografia, que exibem documentos históricos e imagens dos atores tomando banho de açúcar. Por sua vez, os figurinos são corretos e adequados. Salienta-se ainda a agradável trilha sonora exibida ao vivo pelo músico Adriano Salhab.
Mais uma vez, como na produção teatral Leopoldina, Damigo acertou! Babilônia Tropical é uma ótima dica para quem curte um bom teatro!
Texto crítico de Alex Gonçalves Varela.