Entre tramas intrincadas e personagens inesquecíveis, a novela “Vale Tudo” conquistou o Brasil no final dos anos 1980 ao escancarar a corrupção, os preconceitos e as contradições de uma sociedade em transição. Quase 40 anos depois, a jornalista e escritora Ana Paula Gonçalves decidiu revisitar a obra em profundidade com seu livro “O Brasil mostra a sua cara: Vale Tudo, a telenovela que escancarou a elite e a corrupção brasileira”. A publicação nasceu de sua tese de doutorado e revela como a produção da TV Globo conseguiu capturar o espírito de uma época e traduzir dilemas que, lamentavelmente, permanecem vivos no Brasil contemporâneo.
Em entrevista exclusiva ao jornalista Rodolfo Abreu, Ana Paula relembra o processo que a levou a escolher a novela como objeto de estudo. “Não foi uma escolha imediata”, confessa. Ela começou estudando a sociedade brasileira durante a transição para a democracia, e a televisão, especialmente as novelas do horário nobre, eram o espelho mais poderoso dessa época. “Vale Tudo” se destacou por tratar com coragem temas como corrupção, desigualdade e preconceito, o que a tornou essencial para entender o Brasil daquela época.
Além de contextualizar a obra no tempo, Ana Paula reflete sobre o impacto cultural da novela, a expectativa em torno do remake prestes a estrear e a relevância de escolhas que dialogam com a diversidade contemporânea, como escalar atrizes negras para os papéis centrais. Para ela, a história continua ressoando porque os dilemas éticos e sociais que marcaram “Vale Tudo” permanecem incrivelmente atuais, ainda que o cenário midiático tenha mudado profundamente. Para a escritora e jornalista, o desafio será captar um público disperso entre tantas opções de entretenimento, mas acredita que a força da trama tem potencial para se conectar até com as novas gerações.
Acompanhe a entrevista.
Rodolfo Abreu: Porque você escolheu a novela “Vale Tudo” como tema de sua tese de doutorado e, posteriormente, publicou o livro sobre o tema?
Ana Paula Gonçalves: No início do doutorado eu não sabia que estudaria Vale Tudo como recorte de pesquisa, a decisão veio no processo de estudar o tema que eu queria: como era a sociedade e a televisão no período da transição da ditadura militar para a democracia. No final da década de 1980 as telenovelas da TV Globo eram o produto mais assistido e comentado pela população, especialmente a do horário das 20h, a grande vedete da emissora. Fiz uma lista de todas elas e cheguei à conclusão de que Vale Tudo abordava praticamente todos os assuntos que podem ser alusivos à construção de nossa identidade nacional. Resumindo: não foi fácil, foram dois anos estudando Brasil, depois telenovelas para então chegar em Vale Tudo, já na metade do doutorado.
Publicar o livro foi um desejo desde quando eu escrevi a tese, como jornalista sempre tive muita dificuldade de escrever na linguagem acadêmica e, por outro lado, queria escrever um trabalho que fosse atrativo não apenas como pesquisa, mas que contasse uma parte da história para o leitor que tivesse interesse. Acho que o final da década de 1980 e o que aconteceu no ano de exibição de Vale Tudo (Constituinte, escândalos políticos, inflação…) ainda pouco contado, e, pela análise da novela eu vou falando sobre o brasileiro e nossa sociedade.
Rodolfo Abreu: Você teve na sua banca a autora Rosane Svartman e, em seguida, ela escreveu o prefácio do seu livro. Como é a sua relação com ela e como ela contribuiu para sua pesquisa e seu livro?
Ana Paula Gonçalves: Eu não conhecia a Rosane na época da banca. Minha orientadora, Tatiana Siciliano, havia participado da banca dela e me passou sua tese para me inspirar e para fonte de consultas. Foi ela também quem sugeriu a Rosane para a banca. Na época eu já admirava seus dois lados: a doutora que escreveu uma tese incrível e a escritora de novelas e, confesso que fiquei com medo de como seria sua leitura do meu trabalho. Para minha felicidade, ela além de ser uma das pessoas mais talentosas que conheço, também é muito generosa. Além de ter contribuído muito na minha defesa da tese, todas as vezes que me encontrava dizia que eu deveria publicar o livro, ao escrever a apresentação do livro eu novamente me deparei com sua generosidade, uma honra mesmo. Inclusive acho que Vai na Fé foi a novela da década e que futuramente precisa ser estudada!
Rodolfo Abreu: São quase 40 anos desde a exibição do original em 1988, quando a novela retratou de forma impactante a realidade social e política que o Brasil estava passando. Apesar de ser entretenimento, você considera que “Vale Tudo” cumpriu de alguma forma como um ‘grito de alerta’ para a sociedade na época?
Ana Paula Gonçalves: Não diria que eu grito de alerta, na verdade ela mais escancarou o que a população já via no noticiário, no cotidiano, acho que foi mais um “nossa que legal que estão falando o que penso”, sabe? Era um momento muito difícil para o brasileiro, uma inflação absurda, muito desemprego e escândalos de corrupção. Acredito que as pessoas se sentiam representadas através de muitos personagens. Ao escancarar os preconceitos da elite na forma dos personagens da Odete e do Marco Aurélio, Vale Tudo foi certeira em mostrar que a corrupção, a falta de ética e a necessidade de tirar vantagem partia de cima.
Rodolfo Abreu: Qual sua expectativa para essa nova versão de “Vale Tudo” que estreará ainda esse ano na TV Globo? Acredita que terá o mesmo impacto que a original?
Ana Paula Gonçalves: Eu estou ansiosa para ver a novela, dependendo de como autora e direção levar a trama, ela pode causar um impacto nas pessoas que não assistiram a primeira versão. Porém, não podemos esquecer que a novela hoje não tem mais a mesma força que na época da original, onde tínhamos nove canais de televisão, com a maioria das pessoas com apenas uma televisão na casa e um hábito de todos assistirem a novela. Atualmente o desafio de Vale Tudo vai ser cativar um público que dispõe de diversos canais de streaming, internet, redes sociais, um novo Brasil em se tratando do modo de ver televisão, de consumir entretenimento.

Rodolfo Abreu: “Vale Tudo” focava em corrupção e ética, mas também abordava outros temas igualmente relevantes como o alcoolismo, por exemplo. Como você avalia a percepção do público de 1988 e como acredita que os mesmos temas serão recebidos hoje, quase 40 anos depois, na nossa sociedade atual?
Ana Paula Gonçalves: Com certeza foi muito inovador em 1988, a personagem Heleninha termina a trama frequentando o AA, fala-se bastante sobre o drama das famílias que convivem com o vício, além disso Vale Tudo tratou de etarismo (o personagem Bartolomeu, que é mandado embora por conta da idade e fica muito deprimido), homofobia (a irmã do vilão Marco Aurélio morre e ele não quer deixar o que sua companheira tinha direito), dentre outras coisas. Atualmente temos um grande avanço no que tange à busca de boas informações, de tentar construir tramas que agreguem o combate a temas como os citados, mas, ao mesmo tempo, temos uma sociedade mais careta em determinadas regiões e grupos do que tínhamos na década de 1980: encaretamos! A televisão encaretou para agradar todos os públicos e não sei como os temas serão abordados na nova versão.
Rodolfo Abreu: A escolha de atores pretos para viverem personagens centrais como Raquel e Maria de Fátima traz mais diversidade e conexão com nosso tempo. Como você avalia essa escolha?
Ana Paula Gonçalves: Acho que foi uma escolha muito acertada. Estamos em outro Brasil, onde mais da metade da população se declara negra, isso faz com que uma Raquel negra seja uma escolha muito acertada e coerente com as características da personagem. Quando estudei Vale Tudo, sempre pensava que ela deveria ser negra, mas também sabia que isso jamais seria possível uma televisão branca como a que vivíamos em 1988.
Rodolfo Abreu: Você acredita que as novas gerações que assistirão o remake vão se identificar com a trama a ponto de querer assistir a versão original de “Vale Tudo”, ou somente vão ver os edits de comparação das versões no Tik Tok?
Ana Paula Gonçalves: Não sei dizer, mas já tenho percebido a curiosidade e ouvido diversas pessoas me contando que estão assistindo a original, mas como será não consigo prever.
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Entrevista por Rodolfo Abreu (@rodolfoabreu)
Imagens: Divulgação