Uma vez numa reunião ouvimos a seguinte afirmação: “Preto não pode ser bicha. Enfraquece a raça negra”. Ficamos perplexos! Considerações como a que reproduzimos deixa transparecer o caráter racista da sociedade brasileira e o domínio do patriarcado, sobretudo o do homem branco, cis, heterossexual. E é exatamente com o intuito de questionar o aspecto misógino e excludente da nossa sociedade, sobretudo em relação ao homem preto homossexual, que o espetáculo está colocado.
A dramaturgia de Rodrigo França não apenas questiona como argumenta sobre o valor dos gays negros, homens bonitos, inteligentes, capazes, que partilham valores, tradições, costumes, crenças, doutrinas, que deixam transparecer que são capazes, resistentes, podem exercer seus direitos e cumprir seus deveres.
Na montagem da nova temporada a peça é encenada pelos atores Alexandre Paz, e Joao Mabial, que substitui a Orlando Caldeira. E a dupla evidencia exatamente a força e as qualidades dos homossexuais negros. Resistencia é a palavra chave destes indivíduos, que estão no palco engajados na denúncia contra a violência e os preconceitos que os gays negros sofrem. Eles desejam ser livres, e ser o que eles são, sem censura, violência e repressão.
Angu, título que a peça recebe (por sinal bastante feliz!), é o nome dado a um prato da culinária africana, muito consumido pelos pretos escravizados em nossas terras. Como herança, o alimento foi incorporado pela culinária brasileira.

O dramaturgo apoiado na ancestralidade nos apresenta histórias de homens negros gays que subvertem o óbvio: a não-performance do homem negro com a sua masculinidade ultra, mega viril e heteronormativa. Ao ter essa postura, o dramaturgo nos apresenta diversas histórias de pessoas invisíveis que agora ganham visibilidade e passam a ser lembradas, fictícias ou não.
Os personagens e as suas histórias são: o sargento da Polícia Militar que honra a sua farda, mas a sua sexualidade é alvo de piadas dos colegas; um jovem estudante de enfermagem que se deslumbra com a classe média branca e deseja ser por ela incluído; o sonhador que fica diariamente sentado no banco da rodoviária e se envolve numa tarde de amor em um banheiro público; o menino encantado com o que dizem do seu tio Gilberto, um homem negro gay que desapareceu no mundo para fazer a sua arte longe da família homofóbica; Madame Satã – transformista-malandro; e uma homenagem ao Les Étoiles, icônica dupla queer negra brasileira que abriu as portas da Europa para a MPB.
A dupla de atores funciona muito bem. Há um entrosamento perfeito entre os dois. Parece que atuam juntos há anos. Dominam o texto e o palco plenamente. Realizam interpretações adequadas, e passam o texto com emoção e poesia, dilacerando os ódios e preconceitos.
A direção de Rodrigo França busca deixar os dois atores livres, a vontade na interpretação dos diversos personagens e suas histórias, imprimindo uma direção marcada por forte emoção e sensibilidade.
Os dois atores iniciam o espetáculo usando roupas brancas. A seguir, ao banho de ervas, normalmente utilizado para fazer uma limpeza espiritual, eles usam um macacão sem mangas em tom coral. O figurino é uma criação de Tiago Ribeiro, adequados e simples.
Por sua vez, o criativo e original cenário executado por Clebson Prates representa um conjunto de portas de armário brancas, feitas em borracha EVA, suspensas na parte traseira do palco. É uma alusão a expressão “sair-se do armário”, o assumir-se gay. Há também espalhadas pelo chão do palco louças de santo na representatividade dos terreiros de religiões de matrizes africanas. E, mobílias como cinco cadeiras de diferentes tempos históricos.
A iluminação de Pedro Carneiro é simples, sem extravagancias, e define bem as cenas.
Angu é uma peça teatral que exalta a diversidade e a cultura dos pretos. Tira o “caroço” que constitui o nó górdio do olhar preconceituoso e racista que a sociedade estabeleceu sobre o “angu” produzidos pelos homens negros gays. O ” papá” produzido por eles é bom, bonito, e de valor.
Excelente produção cultural!