Um dos projetos sociais mais importantes do Brasil, a Orquestra Maré do Amanhã (OMA)
utiliza a música para a transformação de realidades. Ensina música clássica a crianças e adolescentes de uma das mais violentas favelas do Rio de Janeiro. Fundada em 2010 por Carlos Eduardo Prazeres, esse belo projeto nasceu depois de um episódio bastante difícil.
No ano de 1999, um carro azul com marcas de sangue é abandonado em uma rua próxima ao Complexo de Favelas da Maré. Os investigadores da Divisão Antissequestro concluem, depois de alguns dias, que ali, naquela região, viveria o assassino do Maestro Armando Prazeres, que dirigia o veículo na véspera e havia sido sequestrado no bairro de Laranjeiras, no Rio.
O que ninguém poderia imaginar é que este episódio doloroso traria para a Maré um homem que mudaria a vida de crianças e adolescentes da região. Carlos Eduardo Prazeres, filho do maestro, decidiria começar ali um dos mais importantes projetos de transformação de vida através da música, inspirado no trabalho do pai. A escolha da região foi a forma que Carlos Eduardo encontrou de virar a página dolorosa de sua vida. Onde interromperam o sonho de Armando Prazeres levar música às comunidades, Carlos Eduardo Prazeres o fez renascer.
O jornalista Rodolfo Abreu teve a honra de conversar com Carlos Eduardo Prazeres, fundador da Orquestra Maré do Amanhã. Confira a conversa.
O projeto Orquestra Maré do Amanhã (OMA) completa 13 anos de atuação em 2023. Passou de uma ONG de ensino de música a vinte e poucos alunos, para um dos projetos mais respeitados de transformação social do Brasil. Como você enxerga a evolução, o impacto do projeto e o retorno das ações para a comunidade?
Carlos: Assim que chegamos na Maré percebemos que uma criança da favela é igual a uma criança de fora da comunidade, ela quer ser respeitada e reconhecida. Ora, ao nascer ela percebe que quem é respeitado e reconhecido é o traficante. Desde cedo esse é o modelo para essa criança.
A partir dessa percepção, decidimos atuar em duas vertentes: preparar esses vinte e quatro meninos para serem multiplicadores dentro da comunidade e fazer deles celebridades, modelos a serem seguidos.
Foi assim que, após os alfabetizarmos musicalmente, os enviamos para fazer cursos com a Associação Internacional Suzuki. Eles se capacitaram como professores de musicalização infantil e de seus respectivos instrumentos (ensinamos violino, viola, violoncelo, contrabaixo e flauta transversal).
Concomitantemente, sempre inovando, fomos convidados a participar de quase todos os programas de TV. Estivemos no Globo Repórter, Vídeo Show, Conversa com Bial, Encontro com Fátima Bernardes, Caldeirão do Huck, Domingão do Faustão, entre outros.
Em pouco tempo eram efetivamente celebridades na Maré. A partir daí as crianças para as quais davam aulas na pré-escola começaram a pensar “quero ser como os tios”. Estava mudado o paradigma de vida desses pequenos. Essa foi a grande vitória do projeto, com isso conquistamos a admiração e o respeito da comunidade e os frutos começaram a aparecer. Hoje esses jovens ensinam música a 4 mil crianças e adolescentes da favela.
Além das questões emocionais decorrentes da motivação da criação do projeto na Maré, quais foram as principais barreiras a serem superadas ao implantar o projeto de musicalização para crianças e jovens? Vocês foram desacreditados que jovens de comunidade se interessariam pelo ensino de música clássica?
Carlos: Para vencer esse preconceito bebi na fonte do meu pai, Maestro Armando Prazeres. Foi trabalhando com ele que aprendi que temos que quebrar os preconceitos. Isto porque o que se tem contra a música de concerto é “pré-conceito”. Hoje, por exemplo. Já ouvi muitos elogiarem a abertura da novela das sete e ficarem surpreso ao saber que se trata de uma sinfonia de Ludwig Van Beethoven.
Adoram quando um anúncio da TV usa um trecho de Mozart ou Vivaldi. Contudo, quando se fala em um concerto, torcem o nariz. E aí emendo com a resposta da pergunta seguinte. Esse foi o legado de meu pai. Quando chegamos a um colégio e olhamos aqueles rostinhos atacamos um medley de músicas de Anitta ou um rock como Sweet Child O’Mine. As crianças enlouquecem!
Depois disso pode até tocar um concerto de cravo e violino que eles vão amar. As barreiras do “pré-conceito” foram quebradas.
A escola da orquestra ensina música clássica, mas também entram canções populares e ritmos bem brasileiros como o samba e o funk carioca. Qual o objetivo e a importância dessa mistura de gêneros musicais no projeto?
Carlos: Aprendemos que para ganhar aquele povo temos que entrar no mundo deles. Se eles gostam de funk, precisamos entrar nesse mundo. Se as famílias gostam de música nordestinas, vamos de Gonzagão e Dominguinhos.
Além disso, quando as oportunidades surgem abraçamos sem medo. Convidados a desfilar com a bateria da Beija-Flor, lá fomos nós. Ao sermos convidados pela cantora Anitta para subir o palco do Revéillon de 2017 com ela, aprendemos suas músicas, como Vai, Malandra e outras.
Agora, por exemplo, fomos convidados a acompanhar a grande Alcione no show de comemoração de seus 50 anos de carreira. Nesse momento respiramos as músicas da eterna Marrom.
Isso sem falar em nossa ousadia. Convidados pelo Papa Francisco para tocarmos para ele no Vaticano, enquanto todos pensariam em apresentar MPB ou música regional, brindamos o Santo Padre com tango! E ele ficou maravilhado e grato por ouvir música de sua terra natal.



Os jovens da OMA replicam os conhecimentos musicais para os alunos dos Espaços de Desenvolvimento Infantil na Maré, em parceria com a Prefeitura do Rio, abrangendo mais de 2.500 crianças. Como é ver o projeto florescendo e frutificando desta maneira?
Carlos: Essa é a magia que nos renova a esperança a cada dia. Já estamos ensinando música a mais de 4 mil crianças. Toda criança entre quatro e seis anos, matriculada na escola, está aprendendo música conosco. Mudando a forma de verem o mundo, permitindo que a música abra suas cabeças e corações, esperamos transformar aquela comunidade em um lugar de paz.
A Orquestra já fez apresentações em importantes eventos de todo tipo. Algumas se destacam, como o momento da OMA no palco Favela do Rock in Rio e também tocar para o Papa Francisco em Roma. Como foi viver juntos todas cada uma dessas emoções?
Carlos: Foram momentos mágicos. No Rock in Rio por vermos milhares de pessoas assistindo ao nosso show. Não estávamos acompanhando um artista, nós éramos os artistas! E o desafio foi imenso: apresentamos um concerto só de rock, com Queen, Metálica, Bon Jovi, Guns and Roses, Paralamas do Sucesso, Raimundo, Raul Seixas, entre outros.
No entanto, tocar para o Papa Francisco no Vaticano mudou nossa história entre AP e DP, antes do Papa e depois do Papa. Além de ser uma experiência incrível para os meninos foi uma experiência mística para mim. Depois do nascimento do meu filho foi o momento mais importante da minha vida. Acredito no poder sobrenatural das bençãos do Papa para nos ajudar nessa árdua luta de mudar a Maré.
Em 2018 a OMA virou tema do documentário “Contramaré”, de Daniel Marenco. Como foi preparar os participantes do projeto para um registro que refletisse bem o aquele momento da Orquestra e como foi a repercussão deste filme?
Carlos: Para eles foi uma curtição. Sessões de cinema onde eram os artistas, autógrafos, fotos no jornal, enfim. Isso mexe com a autoestima dessa molecada e os faz crerem em seus próprios sonhos.
Quanto ao dia a dia do documentário foi bem simples. O Daniel Marenco soube viver nosso cotidiano e cristalizar os momentos de forma sensível. Nada foi ensaiado, é o nosso cotidiano mostrado em película. E ver o filme vencendo vários festivais só aumentou nosso orgulho. Ali está a história da Orquestra Maré do Amanhã.
A OMA ganhou uma sede própria apenas em 2018, depois 8 anos de muita luta. Como essa conquista impacta no trabalho que vocês desenvolvem?
Carlos: Você não tem ideia da transformação na vida do projeto. Estávamos acostumados a ensaiar e ter aulas em meio a gritaria dos corredores e do recreio nas escolas. E isso tudo num calor de fazer dó. Agora temos um prédio climatizado, com salas de aula individuais e com isolamento acústico. O crescimento musical foi notório. E agora estamos para ganhar um teatro, o primeiro teatro dentro de uma favela, para servir à favela. É o reconhecimento de todo nosso trabalho.


Conheça e apoie o projeto Orquestra Maré do Amanhã
Site: https://maredoamanha.org/
Instagram: https://www.instagram.com/orquestramaredoamanha/
Sede: Rua da Proclamação, 140 – Bonsucesso, Rio de Janeiro-RJ
Imagens: Divulgação
Entrevista: Rodolfo Abreu
