Depois de 22 anos, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro volta a apresentar “La Traviata”, uma das óperas mais famosas de Giuseppe Verdi. Desta vez, a personagem principal, Violetta Valery, famosa cortesã parisiense que se apaixona por um jovem estudante, será interpretada pela soprano brasileira Ludmilla Bauerfeldt – um dos grandes nomes do mundo lírico e um orgulho para o nosso país.“La Traviata” é baseada em “A Dama das Camélias”, romance e peça teatral de Alexandre Dumas Filho, e é uma das óperas mais queridas do público. Chega ao Municipal do Rio a partir de 17 de novembro, com Coro e Orquestra Sinfônica do TMRJ, concepção e direção cênica de André Heller-Lopes, direção musical e regência de Luiz Fernando Malheiro.
Ludmilla brilhou como Dona Anna, da ópera “Don Giovanni”, de Mozart, no ano passado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo sucesso de crítica e de público. Uma prima donna nos palcos e uma mãe dedicada na vida. Ludmilla é mãe do pequeno Lorenzo e faz questão manter o pequeno por perto sempre que pode, inclusive nos bastidores das apresentações. Vida de diva e de mãe não é fácil.
Orgulho brasileiro no mundo lírico, Ludmilla é formada na Academia do Teatro Alla Scala (Milão) onde protagonizou “Don Pasquale” (Donizetti) e “La Scala di Seta” (Rossini). É solista em concertos e festivais na Itália, Suíça, Rússia e Alemanha. Seus últimos trabalhos incluem a estreia brasileira de “Don Giovanni” (Mozart) no TMRJ, “Orphée” (Glass) no TMRJ, a estreia mundial dos “Translieder” (Flô Menezes) na Sala São Paulo – OSESP, a “L’Italiana in Algeri” (Rossini) no Theatro São Pedro (São Paulo) e no “Triptico Feminino” no TMRJ, “Armida Abbandonata” (Handel).
Em entrevista para o jornalista Rodolfo Abreu, a soprano Ludmilla Bauerfeldt fala de sua trajetória, da vida com seu primeiro filho e seus projetos. Bravo!
Como surgiu seu interesse no canto lírico e como foi a sua formação?
R: Sou atriz formada pela Escola Estadual de Teatro Martins Pena. Lá começou meu interesse em estudar canto, como uma disciplina expressiva. Procurei então o Conservatório Brasileiro de Música e conheci o professor Sérgio Lavor, com quem iniciei meus estudos em canto lírico. Na sequência cursei o bacharelado em canto pela Unirio, com a professora Carol McDavit. No dia seguinte ao meu recital de formatura, iniciava meu aperfeiçoamento na Accademia do Teatro Alla Scala, em Milão. Na ocasião, ganhei o primeiro prêmio no Concurso Vozes do Brasil do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e fui selecionada para audicionar no Scala.
Depois de estudar e trabalhar por alguns anos fora do Brasil em instituições referência como o Teatro alla Scala, por exemplo, o que você considera que ficou como legado em sua carreira dessa época?
R: Me formei pela Accademia em 2013/14 e considero um feito único para uma cantora brasileira. Foi um divisor de águas para minha carreira. O Scala é o Olimpo da lírica mundial, nível altíssimo tanto musical como de organização e produção de montagens e concertos. Participei das três montagens como protagonista (duas no Scala e uma no Filarmonico de Verona). Foi uma formação em técnica, repertório, interpretação com os grandes da lírica italiana: a saudosa Mirella Freni, soprano lírico, o maestro Renato Bruson, grande barítono verdiano e a Luciana Serra, soprano coloratura. Também fazíamos concertos no exterior, isso deu muita experiência em papéis e em vários teatros pelo mundo.
Ano passado, na montagem da ópera “Don Giovanni” de Mozart, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, você interpretou a personagem Dona Anna, e ficou evidente tanto para a crítica, quanto para o público, sua técnica e sua entrega a este papel. Como foi para você participar dessa montagem de “Don Giovanni”?
R: Donna Anna em “Don Giovanni” de Mozart é um papel que venho preparando desde o bacharelado na Unirio. Exige muito vocalmente e cenicamente também. Apresentei anteriormente no festival Stars and Rising Stars, em Munique, Alemanha, em 2018. Essa montagem do Municipal me encontrou em um momento muito especial, mais madura, quando estava pronta para enfrentar um desafio dramático à altura da escrita musical mozartiana.
Quando você estava em cartaz com “Don Giovanni”, vimos pelo seu Instagram você amamentando seu filho Lorenzo, de apenas cinco meses na época, nos bastidores do Theatro Municipal nos intervalos. Como foi conciliar o retorno aos espetáculos com a maternidade e como foi sua rede de apoio?
R: Bem, Lorenzo nasceu em março de 2022, os ensaios começaram em junho, tinha então 3 meses. O que deixou o desafio ainda maior. Contei com as vovós, que se revezaram para acompanhar-me nos ensaios e com o meu companheiro Leonardo, paizão integral, totalmente envolvido, em todas as récitas. A troca amorosa com um bebê é tão profunda. Nunca havia imaginado tornar-me mãe, ele veio sem planejar mas com muito amor. Isso coloca as coisas numa nova perspectiva e dinâmica. Haja entrega e organização. Tem sido lindo até então, já acompanhou Mozart na ópera, Beethoven na 9a sinfonia e as Bachianas n.5 de Villa-Lobos. Me emociona sempre levá-lo comigo.
Existe alguma personagem, de alguma ópera, que você ainda não interpretou e que gostaria de fazer?
R: Sim, muitas. O universo vocal e dramático do estilo operístico é vastíssimo. São muitos registros diferentes, isso para falar somente da voz do soprano. Tenho paixão pelas rainhas de Donizetti, Anna Bolena, Maria Stuarda e Elisabetta no Roberto Devereux. Tudo em belcanto me estimula e me faz sempre aperfeiçoar a linha de canto, o fraseado, o legato. Fora o arco de evolução dessas personagens. Amo repertório francês também, Thaís, Manon, Marguerite.
Você participou também de espetáculos da Orquestra Sinfônica de Mulheres do Brasil (sediada no Rio de Janeiro), totalmente composta por musicistas mulheres, sob a regência da maestrina Priscila Bomfim. Qual a importância para as artes e para a sociedade de iniciativas como essa?
R: Esse projeto foi muito estimulante. Ver, trabalhar e criar com mulheres em situação de poder traz uma sensação de reparação histórica. As mulheres estão e são competentes figuras na lírica e onde mais puderem demonstrar suas capacidades. Fico esperançosa que retornem, apesar de saber das dificuldades de iniciativas como essa.
Você teve oportunidade de cantar na Europa e no Brasil compositores românticos. Recentemente você cantou “Armida abandonata”, uma cantata barroca de Haendel, assim como a Euridice, no “Orfeu”do Phillip Glass, compositor contemporâneo; e agora Donna Anna, de Mozart, que é clássico. Existe algum compositor predileto ou período musical que você prefira cantar?
R: Armida, de Handel, Eurydice, de Glass e Donna Anna, de Mozart, todas tem em comum linhas de canto do soprano lírico. Acho muito interessante mesclar estilos no repertório, até porque a oferta de papéis aqui é muito variada, sempre atenta à extensão musical dos papéis. Se pudesse escolher, acho que minha vocalidade se encaixa bem no repertório romântico belcantista.
Para os jovens que desejam trilhar o caminho profissional na música lírica/clássica, que orientações ou dicas você pode deixar?
R: Uma responsabilidade muito grande. Cada caminho é único e válido. Bem, eu diria trabalhem na técnica vocal porque traz liberdade e bem-estar no palco. Estudem os estilos, as línguas, interpretação. Procurem audições, concertos, oportunidades práticas para aperfeiçoarem-se. Tenham tenacidade e amor ao processo de estudo. E, repito o que o meu saudoso Sérgio Lavor sempre me dizia, seu valor não está nem na glória do primeiro prêmio, muito menos quando não é escolhida numa audição. Segue sempre seu caminho de estudo, seu valor está muito além disso. Nada te define, nem te limita.
Ludmilla Bauerfeldt foi entrevista por Rodolfo Abreu (@rodolfoabreu)