Luciana Cardoso tem 40 anos de dedicação ao trabalho como figurinista – esse ofício das artes que é fundamental em qualquer peça de teatro, comercial ou produção cinematográfica. Em entrevista com o jornalista Rodolfo Abreu, a figurinista Luciana Cardoso revela um universo fascinante sobre sua trajetória e o impacto das experiências multiculturais em sua visão de moda e figurino. Nascida em Nova York e tendo vivido em países como Venezuela, Espanha e Uruguai, Luciana compartilha como essas vivências moldaram sua percepção estética e sua abordagem profissional. Com o tempo, sua paixão pela moda foi se consolidando e a levou a uma carreira brilhante no figurino, passando por programas icônicos da TV brasileira, comerciais internacionais e espetáculos teatrais. Com um dos acervos mais diversificados do Brasil, o “Traje & Comédia” (no Rio de Janeiro), Luciana reflete sobre o valor da sustentabilidade e do upcycling na moda, reforçando a necessidade de ressignificar peças e ampliar o diálogo entre tradição e inovação no universo do figurino.



O Acervo Traje & Comédia representa décadas de dedicação e paixão pela arte do figurino. Com peças cuidadosamente selecionadas e uma curadoria que reflete quase 40 anos de experiência, o acervo é uma janela para o universo das roupas que carregam histórias. Seja um vestido vintage resgatado de um antiquário ou um traje feito sob medida para uma produção teatral, cada peça conta um capítulo único. Mais do que um depósito de figurinos, o Traje & Comédia é um repositório de memórias, onde o passado e o presente dialogam por meio de texturas, cores e estilos que transcendem o tempo. Acompanhe a entrevista.
Rodolfo Abreu: Você nasceu em Nova York e passou sua infância e juventude em países como Venezuela, Espanha e Uruguai. Como essas diferentes culturas influenciaram sua visão de moda e figurino?
Luciana Cardoso: A profissão do meu pai nos obrigava a mudar de país de uma hora para outra. Hoje em dia eu percebo que isso era muito forte para mim emocionalmente. Morria de saudades dos amigos que ficavam para trás e da escola anterior. E sempre morria de vergonha de ser a menina nova e diferente. Sempre fui muito observadora e rapidamente aprendia alguns códigos do novo país. Registrar atentamente cada detalhe de cada peça de roupa e acessório era fundamental para ficar igual e pertencer. Ser só mais uma. E levei isso para a vida. Fazia tudo para ficar igual a todas; mesmo corte de cabelo, mesmo estilo, mesmos acessórios. Em no máximo 3 meses já era uma local. E outra enorme influência da vida e daqueles anos era observar a minha mãe. Como mulher de diplomata ela tinha dezenas de compromissos sociais. Todos os dias e muitas vezes mais de um ao dia. Como eles estavam raramente em casa eu aproveitava cada ida dela a casa (para uma troca de roupa para outro compromisso) para me sentar na cama deles e matar a saudade. E terminava prestando muita atenção no que ela fazia. Ela colocava penduradas na porta de um imenso armário todas as roupas da semana. Na ordem dos dias. E embaixo de cada uma os pares de sapatos e as bijoux dentro das bolsas. Sempre com opções. Para interagir comigo ela me perguntava, “com esta bolsa ou com a outra? “Este brinco”? “E este par de sapatos”? Eu ficava muito satisfeita de dar opinião. E meu pai me perguntava, “esta gravata ou esta? Isso se repetiu por muitos e muitos anos. E como não havia salário que chegasse para ter tanta roupa, as roupas iam se transformando ao longo dos anos. Levanta bainha, abaixa bainha, põem um viés, troca o botão, corta a manga. Tudo com uma costureira que ia em casa uma vez por semana. E eu era responsável por orientar a costureira. E algumas roupas eram feitas numa boa costureira da cidade. Mamãe viajava muito e trazia tecidos dessas viagens. Lembro muito de sedas italianas com estampas geométricas. E trazia revistas de moda estrangeiras que folheava muito e ia marcando seus modelos preferidos. E eu adorava também aquelas enormes revistas com todos os desfiles de alta costura.

Rodolfo Abreu: Como foi a descoberta para atuar profissionalmente com figurinos e quais são suas influências nesse campo?
Luciana Cardoso: Provavelmente por influência da minha mãe eu já comecei a gostar de moda desde muito cedo. Folheava incansavelmente cada revista e já sabia mesmo sem ler a legenda cada um dos estilistas. Em algum aniversário, bem pequena ainda, “exigi” um vestido igual aos do Paco Rabanne em tafetá cor de rosa. Nas fotos estou satisfeitíssima. Com 20 anos vim estudar no Brasil. Já me vestia com muita roupa antiga porque tinha descoberto no Uruguai as feiras de antiguidades e tinha ficado apaixonada por camisolas, roupas e acessórios do começo do séc. XX. Ao mesmo tempo, amava a moda dos anos 80. Foi a década em que mais segui a moda. As roupas neon, os volumes, as formas geométricas, os acessórios grandes e coloridos o color block que nasceu ali. Tudo misturado com minhas camisolas. E cabelo cortado curtíssimo e enormes óculos azuis. Um personagem bem diferente. E as pessoas começaram a me falar que eu deveria estudar moda ou figurino. Abriram vagas para estágios no figurino da TV Globo. No dia que comecei me apaixonei imediatamente. Tranquei a faculdade de jornalismo e só consegui concluir a mesma anos depois. As influências foram o enorme interesse que eu sempre tive por moda, iniciado observando minha mãe e a observação atenta do estilo das meninas do novo país. O interesse por história em geral e uma curiosidade imensa que sempre tive pelas pessoas. Acho que essa curiosidade foi herança daqueles anos tentando decifrar os outros para tentar me relacionar e pertencer o mais rápido possível.
Rodolfo Abreu: Na sua visão, como a caracterização dos personagens, mais especificamente os figurinos, influenciam na composição artística dos personagens e do trabalho artístico?
Luciana Cardoso: Acho que o figurino funciona um pouco da mesma maneira que nós quando precisamos criar um estilo que nos defina e que represente a imagem de nós mesmos que queremos passar para a sociedade. E se não nos vestimos naquele estilo único que estamos sempre buscando, nos sentimos mal dentro da própria pele. O processo do ator para encarnar um personagem é complexo. Passa por tentar entender a alma daquele personagem. E seus gestos, sua voz, sua postura, suas expressões corporais. Muitas vezes eles tem que criar isso tudo sem nenhuma referência externa. O figurino em geral entra com este processo já iniciado. Essa troca entre o figurinista e o ator é fundamental para se chegar a um bom resultado. O figurinista já pesquisou alguma coisa e tem ideias que acha que podem funcionar. Eles vão ajustando juntos essa montagem. O figurino correto deve e pode ser a chave de ouro para encerrar a busca do ator para encarnar o personagem. Não há nada mais prazeroso para um figurinista que escutar um ator dizer, “é isto”, “é exatamente isto”, “to pronto”. Quando os atores se despem das suas próprias roupas e vestem as roupas dos seus personagens eles deixam seu próprio eu do lado de fora e “encarnam” naquele que querem representar.




Rodolfo Abreu: Você trabalhou muitos anos para a TV. Quais foram os maiores desafios ao criar figurinos, especialmente para os programas humorísticos?
Luciana Cardoso: A televisão é uma fábrica que tem a função principal de gerar entretenimento. Ela tem a dinâmica, o ritmo e as engrenagens de uma máquina. E precisamos nos adaptar a isso. Em geral ela tem um tempo de criação ou de pré-produção menor que peças teatrais ou filmes. O processo criativo precisa se adaptar a esse ritmo. O programa de humor em que eu trabalhava era semanal e tinha um tipo de humor totalmente inspirado nos acontecimentos do mundo contemporâneo. A graça era justamente transformar o que estivesse acontecendo em piada. Então o ritmo era alucinado. Acontecia um fato hoje que era rapidamente transformado em piada. E gravávamos no dia seguinte para a piada não perder o timing. Outro desafio era vestir os “atores” que em realidade não eram atores. Então não tinham a compreensão do processo e muitas vezes não se sentiam bem em vestir uma roupa que não era a deles mesmo. Mas foram se acostumando. Acho que os figurinos os ajudaram muito a encarnar melhor os diferentes personagens.
Rodolfo Abreu: Trabalhar com filmes publicitários estrangeiros trouxe novos desafios ou aprendizados específicos?
Luciana Cardoso: Muitos desafios. Em primeiro lugar as diferenças idiomáticas. Por mais fluente que você seja em outro idioma pode ser que faltem palavras para expressar exatamente ou definir um estilo, uma cor, um clima. As diferenças culturais. O que é considerado bonito ou engraçado aqui muitas vezes é completamente diferente do que é em outro país. O tempo sempre é curto. Em geral temos menos recursos de produção aqui do que no exterior e a expectativa da equipe estrangeira é que você consiga produzir tudo que for necessário naquele prazo mínimo que você tem. Foram muitos anos trabalhando nesse nicho e os aprendizados foram imensos e muito ricos.




Rodolfo Abreu: Quais são as principais diferenças no processo criativo entre figurinos para teatro, cinema e publicidade?
Luciana Cardoso: A publicidade é para divulgar um produto. E sempre existem vários “diretores” ao mesmo tempo; o cliente, a agência, e o diretor em si. Em geral o tempo de pesquisa e produção é muito curto. E a exigência é enorme. Você precisa produzir um visual para uma marca, em geral, para um produto com uma imagem muito consolidada no mercado. Existe um briefing pré estabelecido de como deve ser aquele/s personagem/personagens. Existem códigos de estética e paleta de cores que devem ser seguidos rigorosamente. Em geral existe pouco espaço para criação. A pressão é grande porque o investimento das partes envolvidas sempre é muito grande.

Rodolfo Abreu: Dos muitos trabalhos incríveis de criação de figurinos que você trabalhou para peças de teatro e longas-metragens nacionais, existe algum trabalho que tenha um lugar especial no seu coração? É possível destacar alguns que você não pode deixar de citar?
Luciana Cardoso: Comecei a fazer figurino num programa que foi revolucionário na TV brasileira, o Armação Ilimitada. Tínhamos total liberdade de criação. A temática era uma mistura de surf, sexo, carioquice, drogas e aventura. Tinham 2 atrizes bem novinhas e com formação teatral que permitiam que criássemos para elas o que havia de mais moderno e inusitado na moda. Depois fui figurinista por muitos anos do Casseta e Planeta. Acredito ter criado uma forte identidade visual para eles. E nos comerciais internacionais para os quais eu fiz figurino durante muitos anos tem muito trabalho muito interessante. Variadíssimos e com estéticas culturais do mundo todo.

Rodolfo Abreu: Seu acervo de figurino (Traje & Comédia) é um dos maiores e mais diversificados do Brasil, com peças cuidadosamente selecionadas. Como começou essa coleção e o que a motiva a continuar com esse trabalho?
Luciana Cardoso: A garimpagem começou quando eu era adolescente e acompanhava minha mãe em antiquários e feiras de antiguidades. Comecei a comprar as peças de roupas que achava nesses lugares. E daí por diante o interesse sempre aumentou. Frequentar feiras aos sábados e domingos é um dos meus programas favoritos. E acabava usando muitas dessas peças para compor personagens. Sempre gostei e pratiquei a reciclagem e o up cycling. Fiz também figurinos para programas de TV, comerciais e peças de teatro que não tinham o orçamento necessário para produzir o que era requisitado. Ter um acervo e já ser experiente na técnica da garimpagem me salvou muitas vezes. A vontade de colecionar e ter um acervo que atendesse em geral qualquer tipo de figurino só cresceu. Por exemplo; uma blusinha de algodão meio sem graça, desbotada e com uma cor entre o pêssego claro e o rosa chá pode ter uma modelagem e uma textura maravilhosa e ser a peça exata para compor uma personagem em qualquer momento. Produzi-la a partir de um croqui pode ser um processo lento e caro que pode não dar certo. O que me motiva é o acervo ser reconhecido por colegas de profissão como um muito bom acervo. Às vezes eles acham uma peça lá que muda o rumo de uma ideia de figurino que já tinham. E quando vejo produções nacionais, vejo muita roupa do acervo.


Rodolfo Abreu: Como funciona o processo de curadoria e restauração dessas peças para manter a qualidade e a originalidade delas?
Luciana Cardoso: A curadoria é a minha experiência de quase 40 anos de figurino. Já fiz todos os tipos de figurino e muitas vezes em escala industrial e com prazos quase impossíveis. Acho que esse exercício me enriqueceu muitíssimo. E sempre gostei de estudar moda. Adoro livros e revistas e os leio e revejo constantemente. O que é lavável, lavo mesmo à mão ou na máquina. O que não posso lavar, mando para uma lavanderia ou deixo arejando no sol dias seguidos. A questão da conservação ou restauração é muito delicada. Já perdi muitas peças por não guardá-las devidamente. Mas para figurino tudo pode funcionar. Por exemplo: aquele vestido de baile puído e com manchas era exatamente o que uma atriz estava procurando para seu espetáculo. Mas já estou planejando uma nova maneira de acomodar as peças mais preciosas e delicadas.
Rodolfo Abreu: Agora você abriu uma grande oportunidade com a venda de peças do seu acervo. Qual sua estratégia a partir disso e quais são os planos futuros para o Acervo Traje & Comédia?
Luciana Cardoso: Eu percebo que muitas peças, por melhores que sejam, às vezes passam anos sem serem alugadas ou compradas. Estou percebendo a necessidade de reciclar o acervo periodicamente. Ter um brechó onde escoar as peças e ao mesmo tempo manter um acervo permanente é o próximo passo a ser dado. Além do mais, nos últimos anos proliferaram acervos por toda a cidade e brechós. O acervo precisa se adequar a essa mudança para sobreviver. E adoraria poder fotografar e digitalizar tudo.
Rodolfo Abreu: Sua paixão por imagens e colagens parece um reflexo de sua criatividade visual. Como surgiu essa prática e que relação você vê entre suas colagens e seu trabalho com figurinos?
Luciana Cardoso: A paixão surgiu a partir das revistas de moda. Sempre chegava uma hora que tinha que doá-las por conta de alguma mudança ou de espaço. Decidia vê-las uma última vez e guardava as imagens preferidas. Em algum momento parti para a colagem. E gosto muito. Pretendo seguir.


Rodolfo Abreu: Seu irmão, Rodrigo Cardoso, também é artista e faz acessórios para figurinos. Como é trabalhar em colaboração com ele?
Luciana Cardoso: O Rodrigo é muito habilidoso e ao mesmo tempo muito sensível. Consegue produzir a partir de um conceito vago ou uma ideia ainda não amadurecida. Fizemos uma vez para um longa metragem várias auréolas de santos. Eram todas diferentes uma da outra e funcionaram muito bem na tela. Às vezes os profissionais que fazem adereços dominam a técnica mas carecem da sutileza que um artista pode ter.

Rodolfo Abreu: Hoje, com a internet, ficou muito popular o garimpo de moda e figurinos. Como você enxerga esse fenômeno?
Luciana Cardoso: Acho um fenômeno espetacular. Eu sempre acreditei nisso. Em achar o que já existe pronto em algum lugar. Em dar nova forma a uma roupa para transformá-la em outra peça. A indústria da moda é uma das que mais polui no planeta. Além de usar trabalho escravo em grande escala. Com a chegada do fast fashion e dos grandes sites de venda a situação piorou muito de alguns anos para cá. Cabe ao cidadão do mundo consciente tentar mudar isso de alguma maneira. Já sofri preconceito , mais de uma vez, por parte de atores ou diretores, por trazer roupas usadas em perfeito estado para uma prova de roupa. Achavam aquilo um absurdo. Queriam um croqui de figurino e uma roupa feita sob medida. Sem ter orçamento para isso… Ainda bem que estamos caminhando nessa direção e que a maior parte da classe artística entende e aceita este caminho.
Rodolfo Abreu: Você é afiliada ao FIAR – Figurinistas e Associados do Rio de Janeiro. Qual a importância de instituições como essa para os figurinistas hoje em dia?
Luciana Cardoso: É muito importante a organização da classe, principalmente para o figurino. O figurino, ainda hoje, é visto como uma engrenagem não tão importante assim numa equipe de filmagem. Ainda hoje em dia você encontra diretores e produtores que acham que basta ir até uma esquina e comprar uma roupinha. Até há pouco tempo, e ainda acontece muito, o crédito do figurinista vem lá nos créditos finais, sem o menor destaque. Não existem, ainda, salvo raras excepções, o prêmio para essa categoria. Em geral o figurino está inserido dentro da direção de arte. A organização da classe permite que avancemos unidos para reivindicar questões salariais, carga horária, folgas, e o reconhecimento da classe como uma parte importantíssima do processo. Em igualdade de condições com a fotografia e com a direção de arte. Sem um bom figurino não há como passar credibilidade a nenhum personagem. E portanto não há como contar uma história.

Rodolfo Abreu: Que dica ou conselho você daria aos jovens profissionais interessados em trabalhar com figurinos para teatro, cinema e televisão?
Luciana Cardoso: Hoje em dia existem cursos profissionalizantes. Adoraria ter feito. O mais importante é ter paixão pelo ofício. E se preparar, além da preparação acadêmica, de todas as formas artísticas possíveis. Frequentar exposições, museus, centros culturais. Ir a peças de teatro, ao cinema, a eventos artísticos. Estudar história da arte. Filmes inteiros são feitos inspirados na paleta de algum pintor. Aprender um pouco de cada etapa do processo; pesquisa, desenho, conceito, costura, montagem.
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Entrevista por: Rodolfo Abreu (@rodolfoabreu)
Imagens: Divulgação