O ator francês Jean Anthelme Rey partiu em 1º de julho de 2025, aos 81 anos, no Rio de Janeiro, cidade onde escolheu viver e onde também decidiu realizar um sonho antigo: ser ator. A trajetória de Jean no teatro é admirável e é uma história que merece ser contada.
O teatro como profissão chegou para Jean já durante sua maturidade: depois dos 70 anos de idade, através da formação com o diretor Daniel Herz, em um mergulho apaixonado e intenso pelas artes cênicas. Francês de nascimento e de espírito cosmopolita, Jean encontrou nas luzes do palco o espaço de escuta, de troca e de vida. Sua despedida, ainda que dolorosa, foi marcada por um simbolismo tocante: Jean teve um mal súbito no palco, durante uma apresentação do espetáculo “No Front”, dirigido por Daniel Herz, em cartaz em abril de 2025 no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana. O público, sem saber da gravidade do que acontecia, acreditou que a movimentação dos colegas de cena ao levar Jean para os bastidores, fazia parte da encenação. Enquanto integrantes da equipe acionavam o serviço de emergência para socorrê-lo, colegas de cena finalizavam a apresentação do espetáculo no teatro. Levado a um hospital próximo, Jean foi diagnosticado como tendo sido acometido por um AVC, que o afastou da cena — da vida — em seus últimos meses.
Foi no Brasil que Jean reinventou sua história. Já na casa dos 70 anos, dedicou-se à formação como ator com um entusiasmo raro de se ver. Era um aluno atento, parceiro de cena generoso, alguém que enriquecia qualquer ambiente com seu olhar refinado e sua vivência plural. Conversava com jovens colegas como iguais, compartilhava ideias com curiosidade e humildade, e trazia consigo a sabedoria de quem viveu muito, mas nunca se deu por satisfeito. Jean era esse sujeito elegante e discreto, que circulava com leveza pelas salas de ensaio, mas cuja presença nunca passava despercebida. Com seu sotaque francês encantador, falava de arte como quem fala de amor — com entrega, com alma.

Tive a honra de acompanhar Jean de perto durante meu trabalho como assessor de imprensa para o espetáculo “No Front” este ano. Presenciei a força e a ternura com que era recebido por seus colegas de elenco e pela equipe criativa da peça. No ensaio geral no Teatro Glaucio Gill, um dia antes da estreia, vi um Jean entusiasmado com a nova temporada da peça e também muito animado com uma viagem que faria à França, sua terra natal, marcada para os meses seguintes. Conversava com Daniel Herz em francês, falando dos espetáculos teatrais, óperas e museus que iria visitar dessa vez, já com tickets comprados. Seu entusiasmo era contagiante. E como foi bonito ver esse artista em plena atividade, com brilho nos olhos, às vésperas da estreia de um trabalho no qual acreditava profundamente.


Jean deixa uma grande saudade, mas também deixa também uma marca afetiva profunda em todos que conviveram com ele nos palcos e na vida. Amigos, colegas de elenco e o diretor… pessoas que cruzaram seu caminho nesses anos no Brasil se despedem com carinho e gratidão. Acima de tudo, a história de vida de Jean Rey é um exemplo, daquelas que nos lembram que nunca é tarde para se lançar ao que se ama.
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Memórias de seus colegas:
Daniel Herz – ator de diretor teatral
Jean é um meteoro francês que surgiu na minha vida. Um meteoro feito de uma
substância única. A cada ano fui me interessando em entender que substância era essa?
Uma mistura de humanidade, inteligência, talento e afeto transbordante.Veio para mostrar ao mundo do teatro que talento e vocação não tem idade para aparecer e se desenvolver.
Não teve um ensaio, um treino em que o seu ator não resultasse denso, profundo
e sempre surpreendente. Não tenho dúvida que nos amamos. O meteoro assim como veio de uma maneira repentina na minha vida, foi-se embora da mesma forma, mas deixou um imenso lastro de amor em todo o meu ser. E isso não tem fim!

Carol Santaroni – atriz
Jean chegou às nossas vidas como um menino apaixonado pelo teatro. Um senhor francês, um diplomata, que no Brasil descobriu, como eu costumo dizer, sua verdadeira vocação: ser ator.
Dedicado, estudioso, sensível e intelectual, assistia a todas as peças, lia todos os autores e era sempre o primeiro a chegar ao teatro para aquecer a voz. Mas Jean era muito mais do que isso: era um grande amigo. Me apoiava sempre. Ríamos juntos, compartilhávamos segredos. Estávamos ali, um para o outro.
Antes de cada apresentação, ele me pedia, como um pequeno ritual: “Carol, fecha o botão da minha camisa? Vê se a maquiagem não tá pesada?” Todos os dias. Como uma marca da nossa parceria de vida. E assim foi também no último dia em que ele entrou em cena.
Sei que o grande sonho do Jean era estar em cartaz com um espetáculo profissional e me sinto imensamente feliz por ter feito parte da realização desse desejo. Prometi escrever um curta-metragem para que ele pudesse atuar, mas não cumpri a tempo. Agora, isso se transformou em um novo desejo: criar um curta-documentário sobre sua história.
Aos 81 anos, ele era um jovem ator apaixonado pelo seu ofício! E tenho certeza de que os deuses do teatro reconhecem a grandiosidade do artista Jean Rey.
Laura Storino – atriz e criadora de conteúdo audiovisual
Jean foi – e ainda é – uma das pessoas mais importantes da minha vida. Um amigo raro, desses que viram família. Com ele, eu compartilhei sonhos, risadas, silêncios, cafés da manhã, sushis, planos para o futuro… e também poltronas de cinema, palcos, camarins e coxias. Sua presença era acolhimento, e sua ausência agora deixa um vazio dilacerante que nenhuma palavra preenche… contudo, o amor que ficou é maior do que a dor, e é com ele que vou continuar honrando tudo o que vivemos. No fim, o maior presente que o teatro me deu não foi um espetáculo, um texto, um diretor ou tão pouco um autor – foi Jean. E com Jean eu seguirei, até o fim dos meus dias.

Deborah Sargentelli – atriz
Jean foi um exemplo pra muita gente. Viveu seus sonhos até o fim e colocou energia em tudo o que amava. Era lindo de ver. Além disso, Jean era amigo. Me perguntava preocupado como eu estava quando começaram ataques contra o povo judeu, mandava dicas de filmes, dividia a plateia para assistir a boas peças. Ser sua colega de profissão e de cena foi um presente. Mas, ser sua amiga era ainda melhor.
Kaike Bastos – ator
Jean sempre teve a capacidade de encantar todos à sua volta. Ouvir suas histórias pessoais e seu desejo de contar novas sempre foi lindo. Um apaixonado por teatro e um ator gigante. Os momentos nos camarins, onde aquecíamos a voz e ríamos de qualquer besteira… o nervosismo das coxias antes de entrar em cena… todos esses momentos ficarão para sempre guardados. Foi uma alegria viver esses últimos anos juntos, fazendo arte com ele. Amizades como a do Jean são raras e especiais.
Clarah Borges – produtora
Jean era luz que iluminava a equipe, sendo o primeiro a chegar nos camarins dos teatros. Com sua essência e sua áurea autêntica, ele possuía leveza na fala e uma maturidade especial em enfrentar o trabalho de ator, trabalho esse em que foi demasiadamente apaixonado. Realizava o espetáculo sempre como se fosse a primeira vez, como se toda noite fosse a estreia da temporada. E sua história sublinhava a luz desse palco, a luz desse coração pulsante em cena e que marca a trajetória de muitos. Jean Rey será sempre lembrado com afeto e amor.
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Jean Rey deixou uma contribuição artística significativa para o espetáculo “No Front”. Foi dele a sugestão de incluir a canção francesa “Le Déserteur (Monsieur le Président)“, escrita pelo poeta e músico francês Boris Vian nos anos 1950. A música, que tem a forma de uma carta endereçada ao presidente francês, narra a recusa de um homem em atender ao chamado às armas, optando por desertar em nome da paz — uma mensagem pacifista poderosa e comovente. A sugestão de Jean se encaixou com precisão na proposta dramatúrgica do espetáculo, que reflete sobre o impacto destruidor da guerra nas pessoas e na sociedade. O diretor Daniel Herz decidiu então incorporar a canção ao desfecho da peça, em uma cena de grande delicadeza e força: Jean entoava os versos originais em francês, enquanto os demais atores traduziam simultaneamente para o português. Era um momento de pura poesia e emoção, onde arte, política e humanidade se encontravam — um verdadeiro legado de Jean para a obra.
Le Déserteur (ao vivo com elenco de “No Front”):
Texto: Rodolfo Abreu (@rodolfoabreu)
Agradecimentos especiais à Carol Santaroni e Daniel Herz
Imagens: Divulgação