Em foco – Olá Fernando Bicudo! Onde você nasceu? Família? Infância? Formação fundamental e média?
Fernando Bicudo – Eu nasci no dia 19 de agosto de 1946, mesmo dia em que nos EUA estava nascendo aquele que viria a ser o presidente Bill Clinton. Eu nasci no Alto da Boa Vista, na chácara do meu avô, numa casa que está em pé até hoje, fica em frente ao clube Montana. O meu avô era professor de espanhol, de civilizações antigas, e era do Exército. Meu pai era da Marinha. E, por conta dele ser da Marinha, nós tivemos uma infância viajando pelo Brasil inteiro. Eu morei em Belém quando eu era garoto. Morei em Natal, RN. E no Rio de Janeiro. Nós firmamos a nossa formação aqui no Rio de Janeiro porque papai queria que nós fossemos alunos do Colégio Militar, uma vez que ele já havia sido aluno do Colégio Militar.
Em foco – Qual foi a importância do Colégio Militar na sua formação e na sua vida?
Fernando Bicudo – O Colégio Militar tem uma importância fundamental na minha vida. Eu tive a felicidade de viver exatamente os anos dourados de 1958 a 1964, aquele período tão bem retratado pela minissérie do Gilberto Braga na rede Globo. Foi um período fantástico. O Colégio Militar, melhor ensino que se pode ter no Brasil, realmente insuperável, nós tínhamos os melhores professores. Professor de português, Nelson Custódio de Oliveira, autor do livro Português ao Alcance de Todos. Ele era nosso professor. Matemática, Ary Quintela. E por aí vai. Nós tínhamos realmente um ensino de altíssimo nível. E, não só o colégio do ponto de vista educacional foi importante para mim, mas também a convivência que eu tive com pessoas amigas e amigos que eu cultivo até hoje. Nos reunimos duas vezes por ano. Somos uma grande família. Nós nos reunimos no dia 6 de maio, que é o dia do aniversário do Colégio, que eu tenho o privilégio de levar o estandarte na frente dos ex-alunos, de comandar a turma. E, depois no final do ano, nós temos a segunda confraternização. Na minha turma tive nomes como Ivan Lins, Luis Armando Queiroz, Helio Portocarrero, nosso coronel-aluno, Lauro Góes, Araken Hipólito da Costa, várias pessoas que ficaram marcadas na nossas vidas. Tivemos o primeiro General preto do Brasil, General Jorge Alves. No Colégio Militar foi aonde eu primeiro despertei para as artes. Eu fazia parte da Sociedade Literária, e participei do elenco do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Esse General Alves era o Jesus Cristo. E, eu era o assistente do Diabo. Tenho muita saudade do tempo do Colégio Militar. Fazíamos esportes, artes…Foi um período maravilhoso dos anos dourados e que me prepararam para fazer um vestibular. Eu tive a felicidade, de sem me matricular num cursinho, passar no vestibular em primeiro lugar para o curso de Economia. Eu sou economista. Me formei pela antiga Universidade do Estado da Guanabara (UEG), atual UERJ.
Em foco – Qual é a sua formação?
Fernando Bicudo – Eu sou economista, me formei na Faculdade de Ciências Econômicas da UEG, atual UERJ. Eu comecei a realizar o curso de mestrado no Canadá, para onde eu fui em seguida, mas não concluí. Essa é a minha formação acadêmica. Mas, paralelamente, eu estudei canto, balé…Eu venho estudando a vida inteira. Vivo estudando filosofia, história…Eu tenho curiosidade em vários campos do conhecimento. Eu tenho sede de saber.
Em foco – Na década de oitenta, você foi diretor do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, momento do governador Leonel Brizola, e intensa participação de Darcy Ribeiro. Comente sobre a sua atuação nesta função.
Fernando Bicudo – Quando eu concluí a faculdade de Economia, eu fui morar no Canadá, em Ottawa. Eu trabalhei durante cinco anos como Adido Comercial. E foi um período maravilhoso. Eu, a partir daí, comecei a tomar conhecimento das Artes do mundo inteiro. Investi o tempo todo que eu tinha disponível, eu ia para New York, para assistir ópera, balé, concerto. Meu investimento era esse. Tinha semana que eu assistia quatro, cinco espetáculos. Era curso intensivo, paixão. A seguir, eu retornei ao Brasil. Fui gerente de marketing da PETROBRÁS internacional, e fui convidado para abrir o escritório da Trading do Banco do Brasil, em Toronto. Chegando em Toronto, eu resolvi organizar um baile de carnaval, que era para que o povo tomasse conhecimento de que o Brasil estava chegando. O Banco do Brasil e Carnaval era a forma mais visível. Só que sendo fevereiro, frio, abaixo de zero, não dava para ser com roupas leves. Então, eu tive a sorte de ter como meu Auditor, o Presidente da Ópera do Canadá. E propus a ele que nós fizéssemos nosso baile em benefício da Ópera do Canadá, que eles poderiam alugar as roupas da ópera para as pessoas que fossem ao baile. E, foi um grande sucesso. Esse baile existe até hoje. A Layla Guanabara, que era a consulesa, e a Maria Teresa deram continuidade à realização do baile, até hoje! É um dos bailes mais agitados do Brasil no exterior. Devido ao sucesso da arrecadação, eles me convidaram para fazer parte do Conselho da ópera como Patrono. Então, comecei a tomar conhecimento das entranhas das grandes companhias de ópera norte-americanas, participando de reuniões do Opera América, que é uma associação que congrega as grandes companhias de ópera da América do Norte. Fui o primeiro brasileiro a ser aceito como membro do Opera América. Tinha reunião duas vezes por ano. Participei das reuniões enquanto estive na América do Norte. Travei conhecimento com diretores das grandes companhias. Enfim, foi um período de aprendizado muito útil, que viria me servir depois, quando retornei ao Brasil e sugeri a Dalal Achcar que criasse a Associação de Amigos do Theatro Municipal nos moldes da Friends of Opera Canada, que eu fazia parte. E ela gostou muito da idéia. Nós fomos ao Darcy e ele aprovou. Na sequência, fui convidado para ser o Diretor Artístico do Theatro, ocupando lugar do John Neschling, que tinha largado a direção artística do Theatro e embarcado para Lisboa.
Trabalhar com Darcy Ribeiro foi algo extremamente excitante. Nós tínhamos a mesma mentalidade de que Cultura é o mais poderoso vetor de equalização de injustiças sociais. E participei ativamente do projeto dos Cieps, inclusive contribuindo e colocando nos orçamentos das óperas, a compra de madeira para a construção de carteiras para os Cieps, na Central Técnica de Produção do Theatro Municipal. E fazíamos muitos espetáculos de formação de platéia. Isso era algo muito gratificante. O máximo para mim foi Aída, que nós realizamos ao ar livre na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. Eu consegui uma parceria com o doutor Roberto Marinho, que me cedeu a infra-estrutura do projeto Aquarius, e eu montei a ópera completa com seus nove cenários no palco que ele nos forneceu. Tivemos um público recorde de meio milhão de pessoas. Minha maior alegria! Fiquei três noites sem dormir, duas na montagem e na estreia estava muito excitado para conseguir dormir!
Em foco – Qual é a importância da montagem da ópera Aída, tendo como estrela Aprile Millo, na sua trajetória de produtor e diretor de óperas?
Fernando Bicudo – Quando eu fui convidado para ser o diretor artístico do Theatro Municipal, eu achava que tinha que me superar. Eu considerava que haviam outras pessoas mais qualificadas do que eu para ser Diretor do Theatro. Então, eu me dediquei como um sacerdócio: era o primeiro a chegar no Theatro e o último a sair. E a minha estréia foi com a ópera-ballet Orfeo, que, graças a Deus, foi um imenso sucesso. Mas eu queria fazer uma grande ópera para provar a mim mesmo a minha capacidade. E consegui montar uma extraordinária Aída, de Verdi. Contratei para ser o nosso cenógrafo o diretor de arte do Franco Zefirelli, que era Gianni Quaranta, que era um espetáculo de pessoa. Fui ao Egito pesquisar e negociei com ele uma cenografia fidedigna, autentica. E nós reproduzimos a majestade do Egito: o templo de Luxor, Karnak, no palco. E chamei para direção cênica a Sonja Frizel, que foi fantástica. E tive a felicidade de meu querido amigo Eugene Kohn me ter revelado a existência de uma jovem que era maior promessa de grande estrela lírica no Metropolitan e que interpretaria “Aida” em uma futura nova produção, que havia vencido o concurso Maria Callas e o Concurso de Jovens Cantores do Metropolitan, que era Aprile Millo. Ele perguntou se eu gostaria de audicioná-la, disse que sim e fui a New York. E eu audicionei a Aprile na platéia do Metropolitan. Eugene, no palco, no piano, sentado, tocando, a Aprile, e eu sozinho na platéia. E foi uma loucura. Quando ela abriu a boca e cantou “Ritorna vincitor!” recebi um impacto incrível e pensei “isso vai ser um espetáculo!” Fiquei emocionado, sem palavras, pela grandeza da sua interpretação, pela beleza da sua voz, pelo timbre, uma coisa extraordinária, muito impactante. E, depois, cantou “O, patria mia” com os pianíssimos sublimes… e foi contratada imediatamente. E nós fizemos um sucesso extraordinário com essa Aída. Quando nós estávamos ensaiando comentei com a Aprile que a minha Aída favorita era a gravação pirata da Aída de Maria Callas, em 1951, na cidade do México, que ela termina a grande cena da Marcha Triunfal, atacando um estrondoso Mi natural, que cobriu todo o som do palco e orquestra e foi triunfante. Sabíamos que não estava escrito na partitura, mas certamente Verdi aprovaria. E Aprile disse: “Ah Bicudo, se você quiser, eu posso, se eu me sentir confortável na hora, eu posso repetir esse feito histórico e atacar esse mi natural no final do concertato” Eu disse: “Maravilha! Mas não vamos falar nada a ninguém, só vamos conversar com o nosso maestro que era o Isaac Karabchevsky, que autorizou. E a reação da plateia foi inacreditável. Porque quando ela atacou o mi natural do final da cena, o Theatro reagiu como eu nunca assisti nada na minha vida. As pessoas ficaram de pé, pulando e gritando “bravo!” E o Affonso Romano de Sant’anna escreveu numa crônica no jornal O Globo dizendo que “parecia que o Brasil tinha feito um gol no Maracanã no final jogo e ganhado a Copa do Mundo de Futebol”. Foi um delírio semelhante, nunca visto. As pessoas não só ficaram de pé, como jogaram o libretto para o alto, como se fosse uma tourada de Madrid. Foi um verdadeiro delírio! Uma coisa impactante que virou manchete internacional. Não só pela fantástica performance dela, como também pela beleza da nossa produção.
A nossa produção de Aída está no Metropolitan. Ela estreou em dezembro de 1988. Nós tínhamos feito no ano de 1986, e, depois, remontamos em 1988, quando realizamos trinta e uma apresentações, nessas duas temporadas. E o Metropolitan comprou a produçao, estreou em dezembro de 1988. E é a mais bem sucedida montagem de ópera do Metropolitan. Até hoje, eles já fizeram mais de duzentas e cinquenta apresentações. Fizeram duas gravações em áudio e vídeo. A primeira com a própria Aprile e Plácido Domingo. E, essa gravação, que virou transmissão mundial de televisão, ganhou um Emmy de melhor espetáculo das artes cênicas do ano. Essa produção já foi vista por mais de um bilhão de pessoas pelas diversas transmissões mundiais que foram feitas pela televisão, cinemas, circuitos fechados e pela internet. Passados dez anos, fizeram outra gravação de áudio e vídeo. É uma produção extraordinária. É minha grande alegria!

Em foco – Em janeiro de 2018, você foi nomeado Presidente da Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Como se deu o seu retorno ao Theatro? Como foi a sua atuação?
Fernando Bicudo – Em 2018, eu fui indicado pelos corpos artísticos do Theatro e Ana Botafogo pediu ao secretário de Cultura que me nomeasse para a Presidência do Theatro. E, assumi com grande alegria. Naquele ano de 2018, eu estava celebrando trinta anos da criação da minha companhia de ópera, a nossa Companhia Ópera Brasil, que dentre outras grandes realizações fez a abertura do Teatro Amazonas, fez a abertura da Eco-92, o encerramento da Copa do Mundo com Plácido Domingo. Estávamos fazendo trinta anos naquele ano. Foi uma alegria poder resgatar a produção. O Teatro passava por grandes dificuldades financeiras. Foi um grande desafio resgatar a excelência da programação, equilibrar as finanças e terminar a gestão sem nenhuma divida. Um levantamento independente de avaliação da minha gestão indicou um índices de aprovação nas diversas mídias de 96,6%, o que me deixou muito feliz e realizado.
Em foco – Qual é a função de um diretor e a de um produtor de ópera?
Fernando Bicudo – Produtor de ópera há vários tipos. Existe produtor de ópera que faz a programação, que consegue os recursos, contrata os artistas, o maestro, os cantores, mas não dirige a montagem. Outros fazem tudo. Quanto ao diretor, ele pode ser um diretor que apenas dirige a cena, faz a movimentação cênica do espetáculo, ou ele pode ser aquele que fez a programação daquela ópera, para acontecer em uma temporada ou propos a um teatro ou foi convidado.
Em foco – Comente sobre a experiencia de ter sido o único brasileiro a dirigir o tenor Plácido Domingo na montagem da ópera Carmem, de Bizet, no Theatro Municipal.
Fernando Bicudo – Dirigir Plácido Domingo na Carmen foi uma grande honra. Eu fui até New York ao seu apartamento para conversar com ele sobre a Carmen. Eu já o conhecia desde 1987, quando o contratei para um Concerto de Gala, que foi a primeira vez que ele veio ao Brasil. Ele com a Aprile Millo. Nós fizemos um primeiro ato da Tosca, um segundo ato de Otelo, e o terceiro ato da Aída, no Municipal do Rio. E, depois, fizemos no Anhembi em São Paulo para seis mil pessoas. Eu disse para ele, que na minha concepção, a ópera Carmen começaria com ele sendo garroteado e a ação se desenvolveria em flash back. E ele gostou muito, dizendo ter cantado em mais de duzentas apresentações, mas nunca morrendo no início. E assim nós fizemos e foi muito gratificante trabalhar com esse artista. No ensaio geral a cena estava muito confusa, e eu observando da platéia. De repente, pedi ao Isaac que interrompesse a orquestra e, que as pessoas não se movimentassem, porque eu ia para o palco arrumar. O coro estava todo bagunçado, misturado. Então, eu comecei a arrumar as pessoas no palco. Depois de alguns minutos, eu me dei conta que o Plácido estava na cena também. Ele estava, junto ao chão, deitado, sem se mover. E ele me perguntou com a maior simplicidade do mundo: “Va benne, maestro?” E respondi: “Si, va benne!” Vejam só, ali humildemente não era a grande estrela Plácido Domingo. Era um tenor que estava subordinado, perguntando ao seu diretor. E é isso que o faz tão grande! Essa simplicidade! A grandeza começa pela humildade!
Em foco – Como você analisa a cultura brasileira? Quais são as suas características? O que a peculiariza?
Fernando Bicudo – A cultura brasileira é a mais rica e diversificada do planeta. E essa diversidade cultural, é devido a essa miscigenação fantástica que nós tivemos: o branco, o preto, e o indígena. O nosso folclore, a nossa cultura popular, que Villa-Lobos, Carlos Gomes e nossos grandes compositores beberam dessa fonte. Eu também tive a alegria quando fui para o norte e nordeste fazer pesquisas e mapeamentos da cultura brasileira, e criar espetáculos baseados nessas festas e danças populares, e ritmos extraordinários que nós temos no Brasil. Sem dúvida alguma, essa riqueza que nós temos é o nosso maior tesouro. E essa Cultura demonstra a riqueza do povo brasileiro.
Em foco – Quais são os seus projetos futuros? E, para finalizar, deixe uma mensagem para os seus seguidores.
Fernando Bicudo – Em 01 de dezembro de 2023, eu fui eleito para a presidência da Associação Brasileira de Artísticos Líricos (ABAL), que é uma sociedade que foi fundada no ano de 1932, por Bidu Sayão e Walter Mocchi, seu primeiro presidente, que foi o empresário de todas as 20 (vinte) primeiras temporadas do Theatro Municipal do Rio, de 1909 a 1929. Estamos resgatando a ABAL e pretendemos realizar a montagem no ano que vem de uma ópera, ou duas, e implantarmos programas de capacitação artística em comunidades carentes e formação de plateia para a celebração de nossos noventa anos de fundação. E teremos boas surpresas, se Deus quiser!
Fotos:Arquivo pessoal/Divulgação