A trama redigida por Silvia Gomez relata que, enquanto aviões de várias partes do mundo decolam e aterrissam, a vigia do KM 23 de uma rodovia abandonada encontra jogada no asfalto uma garota que delira após ser violentada naquela noite estrelada.
O espetáculo inicia com a frase: “Antes de começar, coragem!”. Ímpeto para falar da violência sexual contra a mulher, contra a prática recorrente do estupro que machuca o gênero feminino, contra os desmandos da sociedade brasileira machista e misógina. E o teatro como espaço de resistência, levanta essa bandeira. Ainda mais quando o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 mostra que o ódio e a violência contra as mulheres continuam crescendo em nosso país, atingindo o feminicídio um novo recorde. E o texto de Silvia Gomez contribui para propagar essa denúncia.
Débora Falabella e Yara de Novaes tem uma atuação perfeita. A primeira sente muita dor, foi violentada, machucada, toda quebrada. Ela está grogue de tao massacrada que foi, delirando, tendo alucinações. Por sua vez, Yara faz uma vigia, uma agente de segurança, que assiste a todo ato de violência e nada fez para interromper. Num segundo momento, Yara se aproxima da violentada e busca ajudá-la, minimizar o sofrimento. Inclusive lhe oferece “balas mágicas” para aliviar a dor.
As atrizes dominam o texto e o palco. Elas se comunicam bem com o público e sabem passar a mensagem com emoção e poesia. Interpretam e cantam muito bem. Apresentam uma boa movimentação e realizam coreografias adequadas as cenas do espetáculo, sobretudo Débora. Elas se doam de corpo e alma naquela ribalta.

A direção é de Gabriel Fontes Paiva, que se preocupa com a interpretação técnica perfeita das atrizes. Mas, elas também interpretam com emoção, transmitem afeto, suavizando o tema. Suas falas exalam poesia, deixando transparecer o lugar do sentimento em suas respectivas personagens. Sobretudo Débora, a violentada, que está em estado de delírio, tendo alucinações.
O tema é árido, seco, e pesado. Contudo, a linguagem não realista e poética, misturada a um humor ácido, abre as portas para se refletir sobre as relações de dominação e resistência, de conflito e poder, praticadas pela humanidade desde tempos pretéritos.
O espetáculo é lindo, potente, denunciador e reflexivo, um grito contra a barbárie, a selvageria, a desumanidade que é pratica contra o gênero feminino.
Os figurinos criados por Fabio Namatame são simples, de bom gosto, e adequados. Débora usa camisa branca e calça vermelha. Por sua vez, Yara utiliza camisa branca e saia comprida azul. Esta também carrega o tempo todo um rádio de transmissão.
A cenografia criada por André Cortez é original, arrojada e criativa. No centro do palco temos uma pista de pouso e decolagem, que também pode ser uma estrada, com postes de iluminação. Ao fundo, há um telão onde são exibidas projeções. Nas laterais do palco, visualizamos a equipe técnica do espetáculo, como operadores de som, e luz que são acionados pelas atrizes ao longo do espetáculo.
A iluminação criada por Gabriel Fontes Paiva e André Prado é bonita, e adequada as várias cenas do espetáculo.
A cena final do espetáculo foi a que deixou transparecer mais emoção. Yara, a vigia, sobe a rampa e vai até ao fim da mesma, onde fica parada aguardando Débora, a mulher violentada. Esta, por sua vez, está caída e tenta se levantar. Está toda ferida, machucada, com vários hematomas. Levanta e cai várias vezes. Sobe a rampa e cai, rolando-se pela mesma. Está sem equilíbrio. Depois de várias tentativas, aos trancos e barrancos, consegue ir até o final, e apoia-se na vigia. De repente, uma luz irrompe no horizonte. Ainda há esperança!
Excelente produção cênica!