O argumento é da filósofa Helena Thedoro, letrada, estudiosa das africanidades, a primeira mulher preta doutora do Brasil. A partir dos diálogos estabelecidos com Helena, Thais Pontes e Renata Andrade redigiram o texto da peça, sendo portanto as autoras da dramaturgia.
O espetáculo é uma homenagem ao filho de Helena, que morreu ao levar um “caixote” de uma onda forte na praia.
O texto nos apresenta a relação entre avó e neta. As duas se encontram num momento difícil, em função da perda do neto e irmão, respectivamente. Esse fato faz as duas se aproximar. Mas, temos a ausência da mãe do falecido, que ambas procuram localizar.
A relação entre a avó Leda, interpretada por Dja Martins, e a neta Cecília, interpretada por Luíza Loroza, é de respeito mútuo. Contudo, os diálogos deixam transparecer que é marcada pelo conflito. Este não é caracterizado pela violência. Elas não se agridem, não chegam as vias de fato.
A relação entre avó e neta é conflituosa, em primeiro lugar, no âmbito geracional. A avó é octogenária, e a neta tem vinte anos. São seis décadas de diferença entre uma e outra. O tempo é, portanto, um elemento chave nessa relação.
Como diz a avó na peça, o tempo é um elemento de circularidade. As pessoas vão e retornam. Elas vão deixando as sementes por aí, espalhadas, para surgir outras vidas.
Em segundo lugar, o conflito aparece na questão da sexualidade. A neta se declara lésbica. E, a avó, de principio, fica perplexa. E, num segundo momento, aceita. A avó serve também para quem quer se abrir. Mas, há debate entre as duas.
A avó, ainda que tenha oitenta anos, gosta de praticar o sexo. Ela diz que mulher preta transa até morrer. Ela namora, e recebe a vista de um amigo de sessenta. E, por que não? Sexo é vida!
Há um conflito que também aparece quanto aos usos dos meios tecnológicos. A neta, durante todo o espetáculo, maneja um aparelho celular. Fala em youtube, e tinder. Coisas que sua avó desconhece, pois durante sua juventude ainda não existiam. Ela conhecia o telefone fixo, o rádio, a televisão.
Ao longo do espetáculo, ainda que tenham as suas divergências, a avó diz que ama a neta, e que ela é linda. Seus cabelos são lindos, sua pele, seus olhos, seu sorriso, seu corpo. Ela está chamando atenção para a beleza da mulher preta, e valorizando-a.
A direção é de Luis Antonio Pilar, que foi preciso, nas marcações e em detalhes de direção das duas atrizes. Para além da técnica perfeita do diretor, ele dirige as duas de forma que elas, em suas respectivas interpretações, exalem sensibilidade, emoção, deixem extravasar o coração.
As duas atrizes estão impecáveis. Há um entrosamento perfeito entre as duas. Parece que atuam juntas há anos. Dominam o texto e o palco plenamente. Realizam interpretações adequadas, e passam o texto com emoção e poesia.
O cenário criado por Renata Mota e Igor Liberato é adequado e bem solucionado. É a reconstrução da residência da avó Leda, que ela comprou com a renda que conseguiu com as vendas das balas de coco. Lembra a tradição das tias baianas que viviam na “pequena África do Rio de Janeiro”, que eram mães-de-santo e quituteiras.
Nas paredes há inúmeros turbantes pendurados. Por sua vez, visualizamos a sala, a cozinha, e o quintal. São nesses espaços que as duas dialogam, conversam, trocam ideias, debatem. Em alguns momentos concordam, em outros divergem.
A cozinha é o espaço em que a vovó prepara as receitas das suas iguarias deliciosas, em especial as balas de coco, que o neto que partiu adorava.
A cozinha é também um local de ritmo e tempo. Tudo é realizado respeitando o tempo das coisas. Caso contrário, o funcionamento cessa. Naquele local, vó Leda cozinhava, cuidando da alimentação da família, e assim os protegia e cuidava do bem estar dos entes queridos. Era também um espaço de ensinamentos, onde ela transmitia o conhecimento das suas receitas, o saber gastronômico.
Contudo, para que as receitas não caíssem no esquecimento, e ficasse registrada na memória da sua avó, a neta solicitou que gravasse uma das receitas para inserir no youtube. O vídeo auxiliaria a manter viva a culinária familiar, sendo transmitida de geração a geração, uma herança. É a ancestralidade.

Uma das melhores cenas do espetáculo ocorre quando a avó grava a receita em vídeo para ser em seguida inserida no youtube.
No quintal, as duas espalham na terra as sementes de girassol, que o neto falecido guardava. A avó diz que os girassóis não morrem quando não há a presença do sol. Eles viram-se um de frente para o outro, e se iluminam.
Os figurinos criados por Clivia Cohen são simples e adequados. As duas atrizes iniciam o espetáculo vestidas com trajes brancos, momento em que elas estão chegando do enterro do menino. E, nas religiões de matriz africana, se vai aos enterros vestindo branco. E, a seguir, trocam de figurino, e vestem roupas do dia-a-dia, do quotidiano.
A iluminação de Anderson Rato é correta, adequada, coloca em destaque o que de mais relevante existe naquele espaço cênico, e varia de acordo com a intensidade de cada cena do espetáculo.
A peça tem também uma reflexão importante sobre vida, morte, e memória. A avó diz que as pessoas não morrem enquanto estão na nossa memória. Memória é vida, é lembrança, passa de geração a geração, pela oralidade. A morte é o esquecimento. Enquanto vivemos, não deixamos cair no esquecimento aquilo que desejamos lembrar.
Memória é seleção. Lembramos aquilo que desejamos lembrar. O que não queremos, deletamos e apagamos. Helena Theodoro quer manter o seu filho levado pelas águas vivo na sua memória. Daí, o interesse em homenageá-lo nessa dramaturgia. Homenageando o “pequeno”, ela o mantém vivo!
Excelente produção cultural!
Texto redigido por Alex Gonçalves Varela.