Na data de 14.09.2023 estreou na cidade do Rio de Janeiro a peça teatral A Herança no teatro Clara Nunes, após uma temporada de sucesso na cidade de São Paulo.
O texto é do autor norte-americano Matthew López. A tradução é de Zé Henrique de Paula, que também dirige o espetáculo, deixando transparecer o tom humano, sensível, e poético do texto.
O texto é dividido em duas partes de quase três horas. No período de 14 a 23 de setembro será encenada a primeira parte.
Na Broadway, o espetáculo foi um sucesso, agraciado com várias premiações. No Brasil é integrado por um naipe de primeira linha de atores como Bruno Fagundes, Reynaldo Gianecchini, Marco Antônio Pâmio e Rafael Primot, entre outros, e a participação especial de Miriam Mehler, que não aparece na primeira parte. O conjunto de atores é extenso, num total de doze, é ajustado, e absorveu a proposta da peça.
A peça, em primeiro lugar, recupera a idéia de enredo, ou seja, um texto longo, atual, e a narrativa de uma história em torno do preconceito, da aceitação, da mudança geracional. Uma história com uma narrativa reflexiva, e com a ajuda da iluminação idealizada pela profissional Fran Barros.
Salienta-se ainda que o texto retrata diferentes gerações de comunidades gays norte-americanas. Mas foi muito bem adaptado à realidade brasileira. Os problemas que a sociedade americana no tocante à comunidade gay vivia nas décadas de oitenta e noventa, bem como no momento atual, também eram presenciados por aqui. Mesmas situações em contextos diferentes.

A peça mexe com a identidade da comunidade dos gays, num movimento de ida ao passado e retorno ao presente. Coloca questões e reflexões. Trata de uma geração que foi atingida pela epidemia do vírus HIV, que deixou sequelas e marcas naqueles que viveram as décadas de oitenta e noventa do século XX. E, a geração atual precisa saber o que foi a luta daqueles que enfrentaram e resistiram frente ao vírus mutante. Eles não deixaram as suas defesas serem destruídas. Não podemos esquecer da vida daqueles que nos representaram nessa luta. E isso é uma herança. Nós somos herdeiros daquela geração.
Foi nos tempos daquela geração que se desenvolveu uma campanha massiva da necessidade de se realizar sexo com preservativo, a popular camisinha. A utilização recorrente do material preventivo no momento do ato sexual pela geração atual é uma herança deixada por aquela geração pretérita anterior.
O espetáculo inicia com um conjunto de homens gays numa sala de criação. Querem escrever uma peça, mas não sabem por onde começar. Então, seu autor favorito, Edward Morgan Forster (1879-1970), interpretado pelo ator Marco Antônio Pâmio, aparece, como uma luz de inspiração, e é inserido no texto. Forster, gay enrustido, se torna uma espécie de conselheiro para os demais personagens, a partir da obra de sua autoria intitulada Howards End.
Uma linha imaginária irá ligar Forster aos personagens da trama. Nela, Eric, interpretado pelo ator Bruno Fagundes, e o roteirista Toby, interpretado pelo ator Rafael Primot, são dois jovens gays em crise no relacionamento, após a fama meteórica do escritor. O primeiro é tímido e divertido. Já Toby é individualista e atormentado.
Com a separação entre eles, Eric conhece Henry, interpretado pelo ator Reynaldo Gianecchini, gay, com idade mais avançada, e angustiado pela perda dos amigos para a AIDS. O encontro de Henry e Eric reúne duas gerações de homens gays. Registra-se que Eric era amigo de Walter, ex-companheiro de Henry, que em décadas passadas abrigava em sua casa vítimas da epidemia de AIDS.
Nesses encontros e desencontros, desponta outro personagem Adam, interpretado por André Torquato, aspirante a ator que busca caminhos para lançar sua carreira, rico, simpático, culto e determinado. São gays de distintas gerações que deixam transparecer seus pontos de vista sobre amor, afeto, perda, saudade e amizade.
Um momento espetacular da apresentação se dá na primeira parte quando o ator Marco Antônio Pâmio fica responsável por um longo monólogo, e o término se dá com o conjunto dos atores se perfilando e lembrando dos companheiros vítimas do vírus HIV. Emoção pura! A platéia não mediu os aplausos!
A peça apresenta um retrato dos anseios da geração que enfrentou a explosão do HIV e que teve um andar para trás nos seus costumes após a pandemia da Sida, nos anos de 1980. Foi um momento de freio na liberdade sexual, controle, prescrições.
Por sua vez, vindos de uma época que não presenciou as mortes gradativas e frequentes de gays com HIV, a nova geração, a dos dias de hoje, chamada de PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV), quer trilhar novos caminhos, abrir novas possibilidades, pois o futuro é um horizonte de expectativas a ser desvendado.
O HIV é ainda um desafio a enfrentar. Não tem cura. Mas é tratável. Existem os medicamentos chamados anti-retrovirais, que deixam a carga viral indetectável. Não é mais mortal.
Os gays hoje vem buscando ganhar cada vez mais força coletivamente. Eles querem a despatologização da homossexualidade, ter reconhecida a sua união, querem adotar filhos, lutam contra a violência, buscam a aceitação cada vez maior na sociedade, cuidam da saúde mental, estimulam a realização de eventos homossexuais, entre outras questões.
A peça apresenta personagens gays de distintas gerações, como Eric e Henry. Mas, o que um deixa de legado para o outro, é a necessidade de cada integrante de sua respectiva geração estar sempre juntos, unidos, lutando pelas mesmas bandeiras.
Os figurinos usados pelos atores são corretos, ajudam na identificação dos seus respectivos personagens, assim como o cenário é bem funcional, facilitando a atuação dos atores.
O espetáculo deixa uma mensagem sobre a importância da comunidade. Seja ela qual for, o ser humano tem que buscar se identificar, se encontrar, acolher e ser acolhido com os seus. Procurar no outro um pouco de si e vice-versa.
A peca é humana, clama por aceitação, grita pelo fim dos preconceitos. É excelente! Foi sucesso em São Paulo, e será em terras cariocas também!
Texto redigido por Alex Gonçalves Varela.