Memória é seleção. Selecionamos aquilo que queremos lembrar. E, apagamos dos nossos registros aquilo que queremos esquecer. Lembrar e esquecer são palavras que possuem significados distintos, mas que caminham lado a lado no processo seletivo da memória. E, lembrar de Virgínia Lane (1920-2014), artista, apresentadora de programas infantis, vedete do teatro de revista, é um fato que o teatro não quer apagar, não quer deixar cair no ostracismo da escuridão.
Ao redigir o texto para o musical, Renata Mizrahi e Cacau Higino, os dois talentosos autores deixam implícito essa recuperação da memória da trajetória da atriz, que no ano de 2020 se comemorou o centenário do seu nascimento, justo no fatídico momento da pandemia de COVID.
O texto parte dos momentos finais da vida de Virgínia, na sua última noite de véspera de Natal, quando Virgínia (interpretada pela atriz Suely Franco) e sua filha Marta (interpretada pela atriz Flávia Monteiro) aguardam para a ceia o amigo Alex. Naquela data, Virgínia parte do presente em direção aos tempos pretéritos para relembrar toda a sua trajetória de vida. A dramaturgia, num texto acessível e de linguagem simples, nos apresenta página por página todo o processo de emergência e consolidação da sua carreira. Foi um processo de luta, árduo, de enfrentamento, peleja contra preconceitos e moralismos, respeito, afirmação da voz da mulher. Não foi fácil a construção do nome Virgínia Lane, a “vedete do Brasil”. E, os autores buscam transparecer essa insistência pela carreira de atriz que Lane realizou. Ela queria estar nos palcos e investiu na carreira.
Suely Franco interpreta Virgínia Lane quando ela já era uma senhora idosa, em seus últimos anos de vida, que vivia praticamente em casa. É uma Virginia nostálgica, que vive do auge do passado, chorona, envelhecida, que usa peruca e com dentes faltando, que não quer viver na solidão. E Suely nos apresenta essa anciã de forma primorosa, perfeita, transparecendo emoção e sensibilidade.
Por sua vez, em paralelo, a atriz Bela Quadros interpreta Virgínia no momento do auge, jovem, bonita, sensual, quando atuava como vedete, apresentadora de programas infantis, participava dos musicais do teatro de revista, e, era paparicada, conquistando o então Presidente da República, Getúlio Vargas, de quem foi amante. E, Bela atua de forma exemplar. Canta, dança e interpreta de forma expressiva.
As atrizes Suely e Bela interpretam a mesma pessoa, a vedete Virgínia Lane, em tempos e contextos distintos. Tempo presente e pretérito dialogam o musical inteiro. E, ambas estão afinadas e entrosadas, e muito bem dirigidas por Claudia Netto.
Já a atriz Flávia Monteiro interpreta Marta, a filha única de Virginia. Ela reside com a mãe. Tem a missão de cuidar dela e preservá-la. Flávia interpreta muito bem a paciente filha, zeladora, amiga, mas que se sente impedida de ir a casa de uma amiga para lhe felicitar pelo seu aniversário pois sua mãe não quer ficar sozinha.
As atrizes são acompanhadas por três músicos. Em alguns momentos do musical, eles também participam.
Na trilha musical não podia faltar Sassaricando, Barracão, entre outras marchinhas de carnaval interpretadas por Virgínia Lane. A direção musical é de Alfredo Del-Penho.
Os figurinos são adequados e perfeitos. Suely veste um longo vestido roxo, adequado a uma senhora idosa. Por sua vez, Bela Quadros utiliza figurinos próprios do teatro de revista ou de vedete, próximos aos utilizados por Virgínia Lane quando atuava nas décadas de quarenta e cinqüenta do século XX.
O cenário é a casa onde vivia Virgínia e a sua filha, ambientado num período natalino, com árvore de natal, sofá, mesa com cadeiras, e uma estante.
No lado oposto, há um cortinado, e num espaço ficam os músicos que acompanham as atrizes.
A parte frontal do palco fica livre para as atrizes atuar, cantar e dançar.
O musical cumpre bem a função de reavivar a trajetória da vedete Virgínia Lane. Direção, produção, e elenco merecem ser elogiados e parabenizados. Ao realizar a produção teatral, concretizam a solicitação de Virgínia Lane de não deixar a sua história cair no esquecimento. Venceu a Deusa Mnemósine!
Ótima produção teatral!
Texto redigido por Alex Gonçalves Varela.