No carnaval de 1987, o GRES Império da Tijuca apresentou o enredo Viva o Povo Brasileiro, uma homenagem ao escritor João Ubaldo Ribeiro (1941-2014). O tema escolhido era bem avaliado, com forte teor cultural. Contudo, ao se apresentar na Marquês de Sapucaí, palco dos desfiles das Escolas de Samba, a Império fez um desfile catastrófico. A Agremiação demorou a iniciar o seu desfile, atrasando-o em cerca de vinte minutos, teve sérios problemas de harmonia, e estourou o tempo previsto da apresentação. Como resultado a última colocação e o rebaixamento ao grupo de acesso. Um fracasso total! Mas valeu a homenagem, e João Ubaldo na ocasião desfilou a frente e aproveitou a homenagem. Trinta e seis anos se passaram, e a mesma obra de Ubaldo, publicada no ano de 1984, é agora levada aos palcos teatrais.
Na data de 25.08.2023 estreou no Teatro Riachuelo o musical Viva o Povo Brasileiro (de Naê a Dafé). E estreou de forma acertada, com a marca do êxito. Nasceu com a marca do sucesso!
A obra Viva o Povo Brasileiro é um romance ficcional, que mistura imaginário com fatos que ocorreram ao longo da história do Brasil. A trama começa na época do período da colonização holandesa no nordeste da América Portuguesa, na Ilha de Itaparica, mais precisamente no ano de 1647, e se prolonga até a década de 1970, momento dos governos militares. O texto apresentado no teatro é uma adaptação do diretor André Paes Leme, produto de suas investigações para a tese de doutorado na Universidade de Lisboa.
Quando adentramos o teatro e ingressamos no hall, avistamos diversas almas, que, ao iniciar o espetáculo, sobem ao palco e se juntam ao elenco. São essas “almas encarnadas” que dão o norte do musical. Afinal, o que nós somos? Qual é a nossa identidade? Brancos? Índios? Negros? Qual é nossa “alma brasileira”? É desse tema que o musical trata, da formação identitária brasileira, do produto do encontro e mistura dessas raças, marcado pelo conflito e violência, pela luta e resistência.
O musical tem início com a morte do caboclo Capiroba, assassinado por colonizadores portugueses na ilha de Itaparica. Ele teve uma filha chamada Vu, e dela descendem as mulheres da história. A alma nasce como produto da violência do colonizador contra o colonizado, marca de todo o processo de colonização. Primeiro, ela encarnou nos nativos, e, a seguir, no caboclo Capiroba, ambos violentados.
A alma do caboclo encarnará, dois séculos mais tarde, em 1809, num indivíduo que se torna um alferes, sonha em ser um herói brasileiro, mas morre ainda jovem.
A alma reencarnará anos mais tarde como Maria Dafé, adolescente gerada a partir do estupro praticado contra Vevé (Naê), tataraneta de Vu, por um barão. Expulsa da Ilha, Dafé será protegida pelo negro Leléo, negro liberto e rico, que lhe dará uma boa educação. Dafé assistiu ao assassinato da mãe a facadas. Ela cresce com a missão de se tornar uma heroína do seu povo, e lutar contra a exploração e violência dos senhores. Ela passa a cumprir o desejo antigo de sua alma, de resistir contra os opressores, contra os desmandos dos governantes. Dafé é uma figura feminina, e deixa transparecer o sublinhar dado por André Paes Lemes na narrativa do musical. É uma forma também de falar das nossas ancestralidades, dos nossos antepassados.
Outra figura feminina que é destacada é Merinha, negra responsável pelo envenenamento de um barão usurpador, um dos vilões da peça, que é envenenado, intoxicado, e não consegue mais urinar ou defecar. Os negros apanharam. Mas também resistiram! Organizaram quilombos, fugiam, envenenavam seus senhores, mantinhas vivas suas práticas religiosas nas senzalas, cometiam suicídios em si ou nos seus senhores. E é essa prática da resistência que a narrativa de forma bastante inteligente nos apresenta. Não podemos falar apenas do canto de lamento nas senzalas! O negro não foi apenas uma coisa do senhor!
O musical é costurado pelas músicas de Chico César, que ganharam arranjos de João Milet Meirelles, elaboradas a partir da própria obra de Ubaldo ou nela inspirada. Por sinal, são muito bonitas, letras expressivas e uma melodia que faz muito bem aos nossos ouvidos. Tem samba, samba-reggae, xote, baião, ilu, e funk carioca. Nos dois atos do musical ouvimos canções de boa qualidade.
Os figurinos de Marah Silva são de uma beleza ímpar. São simples, rústicos, de uma originalidade. Não há necessidade de luxos. Pois o musical fala de pessoas simples, negros escravos, libertos, mulatos. Os cenários de Natália Lana são perfeitamente adequados ao espetáculo.
O elenco como um todo também está afinadíssimo. Todos interpretam, dançam, e cantam muito bem.
Para finalizar, vale a pena sublinhar a parceria exitosa entre o diretor André Paes Leme e a Sarau Cultura Brasileira, a produtora do espetáculo. No ano de 2020, eles estrearam no CCBB-Rio o musical A Hora da Estrela, ou O Canto de Macabéa, mas interrompido pela pandemia. E, agora, mais uma vez, estão juntos novamente! Em time que está ganhando não se alteram as peças!
Eles acreditaram! Por isso, que deu certo!
Texto Crítico Produzido por Alex Gonçalves Varela.