O texto de autoria de Dione Carlos é poético, sensível, emocionante, reflexivo, musical e memorialístico. Sublinha a relevância da trajetória de duas atrizes pretas brasileiras, Ruth de Souza e Léa Garcia, que tiveram que enfrentar o preconceito estrutural da sociedade brasileira e o patriarcado para conseguir o reconhecimento e consolidar as suas respectivas carreiras. Elas não desistiram, resistiram e lutaram para conquistar os seus direitos e o espaço no campo artístico brasileiro. As suas atuações no teatro, cinema e televisão foram notáveis e de qualidade. Daí a importância da preservação da memória das duas atrizes pretas.
Para além da construção e da preservação da memória de Ruth e Léa, o texto resgata a geração de atores e atrizes na qual as duas estavam inseridas, e a sua participação no Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias Nascimento. Diversos deles foram lembrados, com suas imagens exibidas na tela de projeções.
Contudo, um ator preto não foi mencionado e lembrado, e ele está vivo e ativo: Haroldo Costa. Este último foi ator do TEN, e atuou com Ruth e Léa. Se tornou salgueirense apaixonado ao ver o minueto de Mercedes Batista, bailarina negra comentada inclusive na peça, para o carnaval do ano de 1963, Chica da Silva. E é uma referência preta da cultura brasileira.
O texto tem o mérito de não silenciar e mostrar como as trajetórias de Ruth & Léa, bem como de outros artistas pretos e pretas, foram atravessadas pelo racismo estrutural da sociedade brasileira. Eles tiveram que resistir!
O elenco é constituído por duas atrizes: Bárbara Reis e Ivy Souza. A primeira faz Ruth de Souza. Por sua vez, a segunda faz Léa Garcia.
As duas atrizes, no geral, se apresentam com interpretações de qualidade e emocionam. Elas também cantam e dançam. Se apresentam ajustadas e afinadas. Estabelecem bons diálogos, uma boa comunicação com o público e utilizam uma linguagem de tranquila compreensão. Têm uma boa retórica. Elas estão unidas, juntas.
Individualmente, Bárbara Reis se destaca mais. Numa relação fracionária, Bárbara ocupa a posição de numerador e Ivy Souza a de denominador. Bárbara vibra mais, se expressa melhor, tanto facial quanto no gestual e corporal, interpreta com profundidade, contagia e emociona, canta bem. Ela sabe se colocar no palco, tendo uma postura que impressiona.
Por sua vez, Ivy me pareceu mais contida, não nos emocionou tanto, não tocou tanto no nosso coração, não nos pareceu vibrante nem contagiante, não nos convenceu com suas interpretações, nem com o seu cantar. Faltou um sal, uma pimenta! Faltou mergulhar mais na representação da atriz Léa.
Ainda sob o palco, visualizamos Gláucia Negreiros, pianista do espetáculo, que nos delícia a apresentação integral com uma sonoridade e musicalidade agradável e sentimental.

A direção de Luis Antonio Pilar se evidencia pelas marcações precisas e certeiras, e por dar um direcionamento à atuação das atrizes, que mais do que uma qualitativa interpretação, elas deixam transparecer a emoção das suas personagens, mulheres atrizes negras que fizeram da sua arte um elemento de resistência.
Os figurinos criados pela talentosa Rute Alves são bonitos, de bom gosto e adequados ao espetáculo. As duas atrizes vestem diferentes trajes ao longo do espetáculo, conforme o contexto do texto.
A cenografia criada por Lorena Lima é adequada, correta e apresenta uma equilibrada disposição dos elementos cenográficos pelo palco.
No fundo do palco, há uma tela de projeções, onde são exibidas imagens das atrizes em cena, bem como fotografias de artistas pretos que participaram do teatro brasileiro. As imagens estão associadas ao texto e também o complementam.
A cenografia reconstitui um estúdio de cinema, em que duas atrizes, Zezé (Bárbara Reis) e Elisa (Ivy Souza) — em homenagem a Zezé Motta e Elisa Lucinda — se encontram para o primeiro dia de ensaio de um filme musical sobre as vidas de Ruth de Souza e Léa Garcia.
A iluminação criada por Gustavo e Marcelo Andrade apresenta uma bonito desenho de luz e contribui para realçar a interpretação das atrizes de suas respectivas personagens.
A direção musical é de Wladimir Pinheiro, que selecionou canções relacionadas à trajetória das duas atrizes, constituindo uma trilha sonora poética, com letras criativas e uma musicalidade de qualidade. Ganha destaque músicas como Felicidade, de Tom Jobim; e o bonito samba-de-enredo da Unidos do Viradouro do ano de 1998 sobre Orfeu, O Negro do Carnaval. Há também música de Milton Nascimento e Pedro Casaldáliga, “Em Nome do Deus”; e outras compostas pelo próprio Wladimir, bem como as de Dione Carlos. E um poema musicado de Conceição Evaristo.
Ruth & Léa é um espetáculo teatral que apresenta uma dramaturgia potente, emocionante e memorialística; uma direção competente e segura; e duas atrizes pretas jovens e talentosas que estão afinadas, entrosadas e unidas.
Ótima produção cênica!