O teatro tem o poder de nos confrontar com verdades incômodas e, às vezes, nos deixar sem respostas definitivas. “Absolvição”, monólogo escrito e apresentado pelo ator e dramaturgo irlandês Owen O’Neill, é uma dessas obras que desafiam o espectador a refletir sobre moralidade, vingança e justiça. A peça, que estreou em Edimburgo e passou por Londres e Nova York, agora chega ao Brasil pela primeira vez, a partir de 7 março, no Rio de Janeiro, com Andriu Freitas vivendo um vingador, sob a direção de Daniel Herz. Em um país de maioria católica, a montagem promete gerar debates intensos e provocar reflexões profundas.
Escrita há quase vinte anos, a história de “Absolvição” permanece assustadoramente relevante. O’Neill foi inspirado por um documentário australiano em que um homem, já na casa dos sessenta anos, relatava abusos sofridos na infância. A maneira como ele revivia a dor de sua juventude, como se fosse ainda aquele menino de nove anos, comoveu o dramaturgo, que decidiu transformar essa dor em uma narrativa potente com uma reviravolta de vingança e justiça.
Dono de uma carreira versátil, O’Neill tem surpreendentemente suas raízes no stand-up comedy, mas nunca evitou os aspectos mais sombrios da condição humana. Para criar “Absolvição”, ele entrevistou várias vítimas de abuso, que não apenas expressaram revolta contra a Igreja, mas também contra uma sociedade que, ciente das violações, se calava. O resultado é uma obra que coloca o público em uma posição desconfortável: seria possível justificar um ato extremo diante de tamanha impunidade?
Agora, com sua obra prestes a estrear pela primeira vez com outro ator e diretor, Owen O’Neill compartilha suas expectativas para a recepção do público brasileiro. Em uma conversa sincera com o jornalista Rodolfo Abreu, ele reflete sobre a construção da narrativa, a repercussão da peça ao longo dos anos e as reações inesperadas que recebeu de espectadores. O dramaturgo nos convida a refletir sobre a pergunta que permeia sua obra: o que é, de fato, justiça?
Acompanhe essa entrevista exclusiva:

Owen O’Neill: Primeiramente, quero agradecer ao diretor e ao produtor por encenar minha peça no Brasil. Eu escrevi a peça há quase vinte anos, mas infelizmente é um problema que não desapareceu. Toda semana ouço falar de alguma criança que foi abusada. Então, obrigado por reservar um tempo para divulgá-la.
Rodolfo Abreu: “Absolution” é conhecida por sua narrativa sombria e intensa. O que te inspirou a escrever essa história e como você criou a atmosfera para imergir o público?
Owen O’Neill: Fui inspirado por um documentário australiano que vi em 2002. Só vi os últimos 15 minutos. Era sobre um homem que estava na casa dos sessenta e estava descrevendo ter sido abusado sexualmente por um padre católico quando tinha 9 anos de idade e, enquanto descrevia, ele se tornou aquele garoto de 9 anos novamente, com os lábios tremendo e lágrimas nos olhos. Foi muito comovente. Ele disse que costumava ficar deitado na cama à noite e tentar descobrir uma maneira de matar o padre e não ser pego, mas não conseguia pensar em uma maneira. No final do programa, pensei que devia a ele encontrar uma maneira e foi assim que tive a ideia. No papel do garoto abusado que se torna assassino mais tarde na vida, tentei garantir que ele nunca se desculpasse ou se sentisse culpado pelo que estava fazendo. Ele teve que fazer justiça com as próprias mãos, ele sentiu que não tinha escolha. Era a única maneira, aos seus olhos, de salvar os meninos desse mal.
Rodolfo Abreu: Você tem uma histórico no stand-up comedy, fazendo as pessoas rirem. Como foi escrever e se apresentar com “Absolvição”, que leva o público por descrições gráficas de assassinos?
Owen O’Neill: Eu sou um comediante de stand up, mas sempre escrevi peças e poesias e mesmo no meu stand-up, nunca me esquivei dos aspectos mais sombrios da natureza humana. Quando tive a ideia de escrever “Absolvição”, entrevistei vários homens que haviam sido abusados e todos disseram que se sentiam muito decepcionados por todos, não apenas pela igreja católica, mas por todas as outras pessoas nas cidades e vilas que sabiam que isso estava acontecendo. Então levei isso muito a sério e tentei tornar os assassinatos dos padres o mais plausíveis possível. Esse foi meu desafio.

Rodolfo Abreu: A peça explora moralidade, justiça e vingança. O protagonista faz justiça com suas próprias mãos. Você tinha intenção de fazer as pessoas debateram sobre a figura do anjo vingador? Você vê isso como uma consequência das falhas do sistema de justiça institucional?
Owen O’Neill: Sim, absolutamente, eu vi isso como uma falha do sistema de justiça e, além disso, uma falha da hierarquia na igreja católica que sabia que estava acontecendo, mas mentiu sobre isso e encobriu por anos para se proteger e o “bem maior” da igreja.
Rodolfo Abreu: A peça estreou em Edimburgo e depois foi para os palcos de Londres e Nova York. Como você acha que a peça será recebida no Brasil, considerando que este é o país com a maior população católica do mundo?
Owen O’Neill: Eu acredito que o tema desta peça será visto pelo que é, uma desgraça e uma abominação e eu espero que todas as pessoas católicas decentes, não importa de que país venham, entendam a pergunta que eu estava fazendo na peça. Eu tentei colocá-los na posição do homem no documentário que estava sendo abusado sexualmente semanalmente. Seria errado neste caso desobedecer ao 6º mandamento? Deixo a pergunta “O que é justiça?” na mente do público.
Rodolfo Abreu: Algumas pessoas podem se lembrar da série de TV “Dexter” devido ao personagem principal ser um serial killer que sai por aí matando outros criminosos, neste caso, padres católicos. O que você acha disso?
Owen O’Neill: Eu nunca vi Dexter, então não posso realmente comentar sobre o programa.
Rodolfo Abreu: Você é escritor e ator. Como sua experiência como performer influencia a maneira como você cria seus roteiros?
Owen O’Neill: Eu acho que como um ator/comediante escritor eu entendo o tempo, o que é muito importante. Ao longo dos anos, aprendi a ser conciso no que quero dizer. O stand-up comedy me ensinou a ir direto ao ponto, você não pode vacilar se for um comediante de stand-up e, se o fizer, não durará muito. E nesta peça em particular, sempre tive que manter o público na ponta dos assentos. Eu não conseguia vacilar. Então, tento elaborar meus roteiros com isso em mente. VÁ DIRETO AO PONTO.
Rodolfo Abreu: Absolution foi elogiado por sua narrativa envolvente. As reações do público ao longo dos anos surpreenderam você de alguma forma? Você pode nos contar alguma situação em particular?
Owen O’Neill: Certa vez, fui abordado por um padre na cidade de Nova York que me disse que estava horrorizado e animado com a peça. Ele disse que se viu torcendo pelo assassino, o que, segundo ele, o fez se sentir culpado e envergonhado. Recebi um e-mail dele um ano depois dizendo que ele havia deixado o sacerdócio e estava trabalhando como assistente social no Harlem.
Entrevista por Rodolfo Abreu (@rodolfoabreu)
Agradecimentos: Diego Teza (@diegoteza)
Imagens: Divulgação
Acompanhe “Absolvição” no Instagram: @absolvição
ABSOLVIÇÃO
Monólogo com Andriu Freitas, Direção de Daniel Herz
7 a 30 de março de 2025 – sexta a domingo
Espaço Abu (Av. N. S. de Copacabana, 249 Loja E, Copacabana)
Ingressos disponíveis: Sympla