O Diretor e ator de teatro Daniel Passi é um inquieto das artes. Tendo acabado de assinar a direção de movimento do espetáculo work in progress “Uma Carta Para Lady Macbeth” (com Lorena da Silva, dramaturgia de Thereza Falcão e direção de Isabel Cavalcanti) na Cidade das Artes, Daniel estreia nessa sexta 5 de julho a segunda temporada “Mão de Vaca” no Teatro Municipal Café Pequeno, no Leblon, espetáculo teatral que idealizou e dirige, além de promover cursos de treinamento teatral para atores através de sua companhia Terror Barato.
Nascido no Rio de Janeiro, Daniel Passi estudou se formou em Artes Visuais na EAV Parque Lage e em atuação pela UNIRIO. Depois de alguns anos se dedicando à atuação no teatro e no audiovisual no Brasil, Passi foi estudar direção teatral na Universidade de Essex, na Inglaterra. Durante o período de três anos vivendo na Europa desenvolveu uma pesquisa contínua de movimentação física no teatro.
Passi parece ter aceitado a missão de produzir um teatro sem amarras e que se repensa sempre. Seu esforço é trazer fluidez com um olhar contemporâneo e de vanguarda em seus trabalhos, que reflita a nossa brasilidade em toda sua potencialidade.
Nessa entrevista com Rodolfo Abreu, o criativo Daniel Passi antecipa algumas novidades da nova temporada de “Mão de Vaca”: a entrada de novas pessoas no elenco, como o ator Gustavo Damasceno (recém indicado ao prêmio APTR de Teatro) na pele de Harpagão, e um mergulho na fisicalidade muito mais intenso, focando a performance do corpo.
Rodolfo Abreu: Quais foram os desafios de encenar uma adaptação de um clássico da comédia francesa de 400 anos para o público carioca?
Daniel Passi: A falta de água no edifício durante o período de ensaios! Ensaiamos a peça no Estúdio Sara, um espaço enorme, arejado e incrível que inaugurei na região de Santo Cristo (RJ) em abril (IG: @estudiosara18) mas que sofre com esse problema as vezes. De qualquer forma creio que esta vivência, digamos assim, rústica, está inscrita no espetáculo, o que muito me agrada. E sobre os 400 anos: considerando que O Avarento de Molière pode ser lido como uma adaptação da peça o Pote de Ouro escrita em 194 A.C pelo autor latino Plauto (e depois transformada em O Santo e a Porca por Ariano Suassuna) chega-se à conclusão que a passagem de tempo funciona diferente no teatro, uma arte arcaica que quanto mais se baseia em arquétipos mais potente é. No fim, vira só uma questão de adaptar aqui e ali os detalhes circunstanciais, trazer para um presente mais imediato.
Rodolfo Abreu: Temas como a ganância e o machismo, personificados principalmente no patriarcado de Harpagão, estão no cerne desse texto. O que “Mão de Vaca” traz de olhar para esses temas nessa montagem?
Daniel Passi: A empreitada desse trabalho é incorporar estes e outros temas mais indigestos no corpo de cada atriz-ator sem um julgamento moral a priori, o que, para mim, é a morte do teatro. Fugir da tendência tão em voga de macetar o mesmo ponto ad infinitum, de pregar para os convertidos. Sim, sabemos que a misoginia, o racismo, o antissemitismo, a avareza, a homofobia (e etc., etc. etc.). são ruins, mas e aí? Não carregamos todxs estas sementes? Não basta uma mudança muito sutil nas condições ao redor para esse lodo desaguar em baldes de dentro de cada umx? Coitadx de quem acha que está imune e a história está aí como prova. Daí a força de trabalhos que fazem nos reconhecermos no monstro, que jogam uma lupa na humanidade dos vilões e não os cristalizam como um ser de papelão a ser derrubado. Para mostrar que sim, o genocida somos nós e é preciso estar atento e forte. Filmes e peças que exploram, por exemplo, a vida sexual de Hitler ou as fragilidades afetivas de um bolsonarista de condomínio da Barra, para citar alguns, são as que mais me cativam. O problema de um discurso tão lógico-discursivo como a que vejo em tantos trabalhos atualmente (mesmo os que não podem exatamente ser chamados de panfletários) é uma falta de sombra, um ar de superioridade moral, um “nós contra eles” que não avança (e nem retrocede) a questão em nada. Dito isso, a consciência de que a onda reacionária recente que atravessamos (?) é composta por inúmeros “intelectuais” e podcasters que “não tem medo de dizer a verdade inconveniente”, que “falam as coisas como elas são, por mais politicamente incorreta que sejam”. Isto faz com que navegar na ambiguidade e no paradoxo seja visto sempre como desconfiança. Compreensível. Em termos especificamente teatrais também me interessou ver estas questões em seus aspectos míticos, como a desmedida trágica do personagem, o motivo de sua queda.
Rodolfo Abreu: Personagens secundários nessa montagem têm bastante força. Qual a importância deles na trama?
Daniel Passi: A maravilha e o tesão da carpintaria dramatúrgica bem azeitada que é a peça original do Molière – e de muitas outras peças clássicas que sobreviveram ao teste da história – é que muitas passagens são compostas por dois ou três personagens de cada vez. Isto faz com que, talvez com exceção de Harpagão, todos tenham aproximadamente o mesmo tempo de palco e a torne um prato cheio para o trabalho de conjunto. O prazer de fazer um espetáculo com um elenco numeroso – principalmente em uma paisagem teatral tão dominada por solos e duos como a nossa – é poder testemunhar de perto o jogo de poder entre cada personagem/performer e ter a possibilidade de ler a peça através dos olhos de cada uma, de escolher que arco dramatúrgico seguir. Isto contradiz a ideia de personagem secundário ou primário. Eu também devo dizer que tive a sorte de contar com um elenco talentosíssimo que aproveita cada aspecto de suas personas e não encaram o trabalho de maneira subserviente. Isto, creio, também se reflete no produto.
Rodolfo Abreu: Como foi o planejamento e o desenvolvimento do trabalho de atuação do elenco para desenvolver personagens autênticos e explorar a dinâmica entre eles?
Daniel Passi: Foi o de limpar a maquiagem. O problema de muitas montagens de textos clássicos – ou até mesmo de comédias como um todo – é o uso de uma linguagem de atuação que já é uma forma completamente morta. Um entendimento equivocado e aguado de Commedia Dell’Arte ou de teatro popular que torna tudo um genérico do genérico do grupo Galpão. Um achar que “é assim que se deve fazer” este tipo de dramaturgia e se esconder atrás de gestos e caretas. Ao mesmo tempo que valorizei a escolha de performers de treinamentos e histórias diversas e o prazer está também na fricção e mistura de linguagens, o trabalho durante as primeiras semanas de ensaio se concentrou em achar um terreno em comum. Uma vez que a base da linguagem (principalmente física) estivesse bem estabelecida, foi só deixar cada umx brotar seu “pokémon” particular, soltá-los no palco-ringue do Café Pequeno e se divertir com o resultado.
Essa busca pelo sem filtro também diz respeito a uma hipótese sobre o que a comédia pode ser que me interessou experimentar. Achar a potência filosófica do tragicômico. O de buscar que as bases trágicas, a lama da vida da situação dramática (por mais farsescas que fossem) estivessem bem compreendidas antes de tudo e exercitadas primeiro no olho no olho, sem titubear. Encarar Molière como um drama existencialista. Depois, se jogarmos a cena um pouco mais rápida no ritmo preciso ou um pouco fora do eixo, a comédia imediatamente brota. Não buscar a gracinha pela gracinha. Buscar o tipo de riso que diziam que Chaplin conseguia provocar: o riso que é um lamento ao contrário.
Rodolfo Abreu: Como foi escolher a equipe responsável por encenar esse espetáculo?
Daniel Passi: Foi só prazer. O espetáculo começou como uma provocação com o Leandro Soares, um ex-rato de biblioteca da UNIRIO como eu. Simultaneamente entrei em contato com Tainá Medina, atriz com quem eu estava louco para reconectar e Balbino de Paula, com quem tinha trabalhado em Grande Sertão: Veredas. Calhou também de ser chamado, por volta da mesma época, para assinar a direção de movimento do espetáculo Uma Carta para Lady Macbeth. O fato de a equipe ser maravilhosa e eu conseguir cooptar quase todo mundo para o meu time foi só amor. Esta foi a base e a partir daí foi só entrar em contato com artistas que eu admiro e que sempre quis trabalhar junto para fechar a ficha técnica. Para usar uma citação de Lispector para lá de batida: uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.
Rodolfo Abreu: A primeira temporada da peça em maio no Teatro Café Pequeno foi um sucesso. O que esperar da nova temporada?
Daniel Passi: Mais vouchers da cantina Donanna! O spaghetti carbonara de lá é estupendo. Obrigado a minha produtora Paula Furtado por esse jabá.
Rodolfo Abreu: Quais são as principais mudanças de “Mão de Vaca” para a nova temporada?
Daniel Passi: Tudo. Vai ser outra peça. Convido quem veio na primeira para assistir de novo e que fiquem à vontade para pagar meia entrada. Estou animadíssimo com as mudanças profundas. Para começar, tivemos a chegada de novas pessoas no elenco. Harpagão (o avarento do título original) será vivido por Gustavo Damasceno, ator fenomenal que está indicado ao prêmio APTR 2024 pela peça A Outra Revolução dos Bichos – e que foi meu professor quase dez anos atrás quando eu fazia escola de circo -; Mariana, personagem chave no triangulo amoroso que se dá entre Harpagão e seu filho, será vivida por Ayla Gabriela e quem assume o papel da filha Elisa é Gaba Cerqueda. Para a nova temporada o desejo é de dobrar as apostas, de radicalizar na proposta e esta proposta é o corpo. Ponto. Eliminei todo o (pouco) cenário que havia na primeira temporada e busco para julho um mergulho na fisicalidade muito mais intenso do que em maio. Uma exteriorização vigorosa das neuroses de cada persona usando a fórmula/tríade do encenador modernista Adolphe Appia (e de inúmeras outras tradições teatrais) como guia: Ator-Espaço-Luz. Estou interessado para julho em explorar mais a fundo o fato simbólico de “Mão de Vaca” ser também o nome de um golpe de Jiu-Jitsu. Um golpe polêmico que tem alto poder de lesão e permite a finalização rápida de uma luta. Creio que é uma boa metáfora para o dinamismo da peça e da visão de amor e relações humanas que o espetáculo propõe. É a imagem que agora está no cartaz.
Rodolfo Abreu: Qual foi a motivação de ter a colaboração de artistas nesse espetáculo, como a Marina Marinho, que fez pinturas que são expostas no teatro?
Daniel Passi: Sou um pintor frustrado. Então quando conheci o trabalho da Marina e pude terceirizar meus desejos pictóricos em duas dimensões, faíscas voaram. O trabalho dela trouxe uma qualidade artesanal para a identidade visual do espetáculo, artesanalidade sendo um dos grandes baratos de ir ao teatro em 2024. Algo que nem inteligência artificial nem Netflix podem fazer melhor. Marina também pesquisa as interseções entre cena e pintura, como suas práticas de pintora e atriz se cruzam. É interessante pensar seus retratos como mais um “transbordamento” do processo do Mão de Vaca. O que virou cena também poderia ter virado pintura e vice versa. Digo o mesmo em relação a Luisa Lemgruber, artista sonora que está assinando o som da peça.
Creio que as artes visuais, a música e a dança contemporâneas já “ganham” de qualquer trabalho de teatro a priori. É como se qualquer espetáculo teatral já começasse no negativo, na desvantagem, e é preciso um esforço extra para chegar a um nível ok por conta da tendência conservadora da forma. É curioso ver, historicamente, como as ideias artísticas de vanguarda chegam ao palco com alguns anos de atraso enquanto as outras práticas citadas acima comportam com mais fluidez o olhar contemporâneo. É claro que o fenômeno teatral – obviamente um entendimento expandido do que seja teatro -, quando acontece pra valer, carrega um poder que nenhuma outra forma expressiva humana chega perto de ter. O poder da loucura teatral é quase uma bomba atômica. E uma dessas potências é o fato de ser uma obra de arte total, a junção de todas as artes.
Rodolfo Abreu: Você tem um trabalho de treinamento teatral e oficina para atores. Fale como surgiu a ideia e um pouco do que os alunos vão aprender. E, ainda, se esses cursos trazem influências de sua formação e experiência teatral no Brasil e na Inglaterra.
Daniel Passi: Sem dúvida. A primeira grande influência desse impulso de treinamento é Antunes Filho, com quem tive o privilégio de estudar no Centro de Pesquisa Teatral em São Paulo durante alguns meses. Para ele, a pedagogia é intrínseca ao trabalho de direção. Me conecto com sua visão de ética e estética como sinônimos, como dois lados da mesma moeda. Do poder do teatro (e das artes como um todo) como fomentador de cidadania. E creio que o trabalho corporal-vocal, quando feito com seriedade e despreocupado com produto, espetáculo ou showbiz, atinge couraças e bloqueios muito profundos e abre canais que são politicamente essenciais. Se sentir confortável em sua própria pele é o eterno desafio. Por isso me esforço em abrir um espaço para atores e atrizes com ou sem experiência.
Quanto a experiência na Inglaterra, o grande resultado foi entender que aqui é o centro do mundo. Que a arte brasileira é o que há. E todo o meu trabalho, que também se reflete em Mão de Vaca, é de atualizar a antropofagia. De ao mesmo tempo não negar as influências estrangeiras já que não existe tal coisa de pureza cultural e não quero cair em uma reedição da Marcha Contra a Guitarra Elétrica (marcha ocorrida em 1967 capitaneada pela Elis Regina) como também não absorver sem pensar discursos imperialistas como “universalidade”, “gênio eterno” etc. Creio que é este momento que estou em minha pesquisa: o desenvolvimento de uma linguagem física performativa que permita incorporar o trágico e o cômico que é tão nosso, tão Latino-Americano.
Eu realizo este trabalho de treinamento através da minha companhia Terror Barato, o “terror” do nome vindo do conceito aristotélico de tragédia como causadora de terror e piedade e o “barato” da arte povera italiana, do teatro pobre grotowskiano e do vapor barato de Macalé e Gal. Os treinamentos são baseados em torno de uma poética ou dramaturgia escolhida a cada edição, sempre com o impulso de desmistificar e compartilhar ferramentas que permitam o performer de se jogar de cabeça. No início do ano trabalhei com Shakespeare e agora preparo para as terças e quintas de julho o ATOS, um programa de treinamento mensal e cuja primeira edição gira em torno das peças míticas de Nelson Rodrigues. Teremos seis artistas incríveis compartilhando vivências e práticas de voz, corpo, vídeo, interpretação, dramaturgia e prática de cena. Tudo com o preço praticamente simbólico de R$30 por encontro. Tem todas as informações no instagram @terrorbaratocia ou pelo email oficinastbcia@gmail.com.
Saiba mais sobre o diretor e sobre a peça:
https://www.instagram.com/danielpassi1/
https://www.instagram.com/maodevacateatro
SERVIÇO
Espetáculo de teatro
Título: Mão de Vaca
Temporada: de 5 a 27 de julho
Dias: Sextas, sábados e domingos
Horário: Sextas e sábados às 20h, domingos às 19h
Local: Teatro Municipal Café Pequeno
Endereço: Av. Ataulfo de Paiva, 269 – Leblon, Rio de Janeiro – RJ, 22440-033
Ingressos: R$ 60,00 Inteira / R$ 30,00 Meia
Site: https://linktr.ee/maodevacateatro
Duração: 60 min
Classificação etária: 16 anos
FICHA TÉCNICA
Mão de Vaca
baseado na obra de Molière
Adaptação Dramatúrgica: Leandro Soares
Direção: Daniel Passi
Assistência de Direção: Sofia Badim
Elenco: Gustavo Damasceno, Ayla Gabriela, Balbino de Paula, Estela Silva, Gaba
Cerqueda, Katerina Amsler e Leandro Soares
Direção de Arte: Gabriela Santiago
Desenho de Luz: Daniel Passi
Operação e Montagem de Luz: Clarice Sauma
Trilha Sonora e Operação de Som: Luisa Lemgruber
Fotografia: Sofia Badim e Ruy Duarte
Pintura: Marina Marinho
Arte Cartaz: Amanda Milliet
Assessoria de Imprensa: Rodolfo Abreu
Produção Geral: Paula Furtado
Idealização: Daniel Passi
Apoio: Cantina Donanna
Entrevista por Rodolfo Abreu
Imagens: Divulgação