Criar universos visuais para o teatro vai muito além de escolher roupas e construir cenários. No caso de Wanderley Gomes, premiado cenógrafo e figurinista, essa missão é uma extensão natural de sua trajetória multifacetada nas artes cênicas. Tendo atuado também como ator, bailarino e diretor de movimento, ele se destacou ao longo de quase três décadas em uma companhia teatral onde pôde experimentar, errar e refinar seu olhar sobre o palco. Essa vivência não só lhe permitiu desenvolver uma assinatura estética singular, mas também o levou a se tornar um dos grandes nomes da cenografia e do figurino no Brasil.
Com um olhar atento para o diálogo entre a cena e o corpo, Wanderley entende a cenografia e o figurino como elementos vivos da dramaturgia. Sua formação dentro do teatro de grupo, onde tudo era compartilhado e reinventado, permitiu-lhe um aprendizado prático e colaborativo. Nessa caminhada, ele teve a oportunidade de trabalhar ao lado de grandes nomes como Cláudio Tovar, Gabriel Villela e Sílvia Sangirardi, que o incentivaram a trilhar esse caminho. O reconhecimento veio em forma de prêmios, como o Shell e o APTR, consolidando sua identidade artística e ampliando as possibilidades dentro do teatro.
Mais do que estilizar personagens, Wanderley busca traduzir visualmente suas essências. Seu processo criativo passa por uma escuta atenta ao texto, à encenação e às necessidades de cada montagem. Para ele, o teatro é um trabalho de equipe, onde figurino, luz, cenário e atuação precisam estar em constante sintonia. Essa abordagem se reflete em espetáculos que estão em cartaz no momento, como “Absolvição” com Andriu Freitas; e “A Palavra que Resta” da Cia Atores de Laura, (ambos dirigidos por Daniel Herz), em que sua estética vibrante e experimental se tornou marca registrada.
Nesta entrevista conduzida pelo jornalista Rodolfo Abreu, o artista Wanderley Gomes compartilha sua trajetória, desafios e inspirações. Da Paraíba ao reconhecimento nos palcos pelo Brasil, ele reflete sobre a importância do teatro como um espaço de experimentação e transformação, além do impacto do uso criativo dos materiais em seu trabalho. Com criatividade inesgotável e um olhar sempre curioso, ele segue expandindo os limites da cenografia e do figurino, provando que a construção de um espetáculo teatral é, acima de tudo, um ato de contar histórias.
Acompanhe a entrevista.

Rodolfo Abreu: Você teve uma Companhia Teatral por 28 anos. Como foi esta experiência e em que momento percebeu que sua vocação para cenografia e figurino?
Wanderley Gomes: Eu sou cenógrafo, figurinista, ator, e tudo isso eu devo a uma formação de companhia, onde a gente vai testando. Tudo que você tem interesse, você pode testar numa companhia. Ao mesmo tempo que atuava como ator, como fui bailarino (fiz balé durante 27 anos), então entendia do trabalho de corpo. Eu e Alice Borges éramos responsáveis pelo trabalho de corpo, pela direção de corpo. E durante o tempo todo eu fui me interessando pelo cenário, pelo figurino… e fui testando. Teve uma época em que nós trabalhamos com Cláudio Tovar, que para mim é a minha grande referência de figurino. Gabriel Villela, Tovar e a Sílvia Sangirardi, que foi figurinista dessa companhia – a pessoa que me puxou para o figurino. Foi a primeira pessoa que falou que eu poderia fazer figurino. Então, nessa companhia, eu pude, durante 28 anos, testar muitas coisas. Estar ali do lado do Tovar, vendo ele fazendo figurino, a Sílvia também, cada um no seu estilo. Para mim, até hoje, o Tovar é a minha grande referência de figurino, junto com Gabriel Villela e com a Sílvia, cada um com um universo totalmente diferente, mas é onde eu bebi dessa fonte.
Rodolfo Abreu: E o que você recorda desse período tão rico na sua trajetória?
Wanderley Gomes: Nós começamos fazendo o Teatro Terror no Teatro da Praia, que foi um grande sucesso. Ficamos durante três anos com a casa lotada. Era uma loucura, era uma febre. Dentro do Teatro Terror podíamos fazer de tudo. Cada semana fazíamos um espetáculo diferente. Chegou uma época que a gente só ensaiava uma vez e apresentava, porque o público já esperava essa representação que não era formal. Não ficávamos dois ou três meses ensaiando o espetáculo. Então cada semana tinha um espetáculo diferente, tinha atores convidados diferentes. Eram umas 30 pessoas nessa companhia durante a época do Teatro Terror. A partir daí, o Antônio Pedro foi convidado a transferir a companhia para a UERJ, então a gente passou a se chamar TUERJ – Teatro da Universidade do Estado Rio de Janeiro. A gente começou a convidar alunos da UERJ ou de fora, não precisava ser exatamente alunos da faculdade, qualquer pessoa que se interessava pelo teatro a gente acolhia. Então a nossa primeira peça que fizemos, “A Saga da Farinha”, que fizemos durante um ano lá no Odylo Costa Filho, o teatrão da UERJ, que não tinha finalizado a obra. A gente se apresentava no chão batido, as pessoas sentadas no chão, sem ar condicionado. A partir daí, a gente começou a testar muitas coisas. O Amir Haddad era também da companhia, Aurélio de Simone e o Amir, ele sempre foi esse conselheiro. A gente fazia, montava as cenas e o Amir, junto com o Antônio Pedro, supervisionava. Esse começo eram dadas aulas que não eram muito didáticas, eram práticas. Então isso formou muitos atores. Muitos atores profissionais que estão hoje no mercado saíram dessa companhia. Tem o Gabriel Moura na música, Seu Jorge veio dessa companhia. Então, essa é uma grande oportunidade, ter trabalhado com companhia, de poder se testar. Não tem obrigação de acertar sempre… Você tá ali do lado de profissionais, que se você erra, o profissional chega e te ajuda a melhorar. Então aí eu comecei a me encantar por cenário e figurino também.

Rodolfo Abreu: Seu trabalho, tanto em figurino, quanto em cenografia teatral, é realmente marcante. Como é o seu processo de criação para os espetáculos que você participa?
Wanderley Gomes: Chegou uma época que eu achei que para ter uma assinatura, você tinha que ter exatamente aquele estilo, né? Como tem Gabriel Villela, como tem Tovar, a Silvia já tinha também uma assinatura muito importante. A Silvia nos deixou tem mais de 20 anos, mas foi uma figurinista muito importante no teatro. E eu comecei, depois de muito tempo, a entender que dentro da companhia, como a gente testava de tudo, que eu não precisava ter exatamente uma linha a seguir. Então o meu trabalho hoje em dia, eu vejo e acho que isso é um ponto positivo… por exemplos em “A Palavra que Resta” é muito diferente do que eu fiz em “Absolvição”, do que fiz em “Vozes Negras – a força do canto feminino”, do que fiz em “Oboró” (que também fazia cenário e figurino)
Eu tento fazer um trabalho de equipe, que eu acho que o teatro é isso: trabalho de equipe. Onde a luz conversa com cenário, conversa com figurino, conversa com ator, conversa com diretor, então eu acho muito importante. Nesse meu trabalho, ter uma escuta, eu acho fundamental. Tenho que entender o que é que o ator está me propondo, a direção, o movimento, começar a criar o figurino. Então geralmente eu chego, gosto de ouvir muito as primeiras leituras para poder entender o que é que aquele diretor, aquele ator, aquele texto está me sinalizando. A partir daí, eu chego com várias referências e a gente vai discutindo até chegar a um figurino e cenário que sejam satisfatórios para todo mundo… que o diretor fique feliz, que o ator fique feliz, que o iluminador consiga fazer um bom trabalho. E é aí que a gente faz um trabalho de equipe incrível.


Rodolfo Abreu: O reconhecimento de sua trajetória na cenografia e no figurino veio também através de diversas indicações e também conquistas de alguns prêmios importantes. O que significa para você esse reconhecimento?
Foi com “Oboró” quando eu ganhei meu primeiro Prêmio Shell em 2020, nós estaremos em 2019, eu fazia cenário, figurino e como ator . Foi o divisor de águas, porque eu sempre fiz figurino em grupo. Sempre fazia 90% do trabalho e o grupo assinava. A partir do momento que eu comecei a assinar, comecei a ser reconhecido. Então com “Oboró” fui indicado a todos os prêmios do ano e ganhei o Prêmio Shell, onde Gabriel Villela também concorria. Então para mim foi uma emoção tão grande concorrer com uma pessoa que é a sua referência e você ganhar. E eu realmente acho que foi muito merecido o meu prêmio. Como, em 2023, eu ganhei o segundo prêmio Shell, porque, como teve a pandemia, eu ganhei dois prêmios Shell seguidos. Foi com “Vozes Negras – A Força do Canto Feminino”, dirigido por Gustavo Gasparani, que eu também fui indicado a todos os prêmios. Ganhei o prêmio Shell, ganhei o prêmio APTR, ganhei o prêmio Ubuntu, que é um prêmio para o teatro negro, para a comunidade negra, que não é só teatro, é literatura, pintura. Então, esse prêmio para a gente é muito importante porque ele faz um apanhado do momento cultural preto, o Ubuntu. Eu ganhei dois prêmios, eu também ganhei com o Oboró. Então, esse reconhecimento me abriu portas para pessoas que já me conheciam de teatro, mas que não sabiam que eu era figurinista, que não sabiam que eu era cenógrafo. Então, a partir desse momento que você ganha um prêmio tão importante, as pessoas começam a descobrir que você é aquele artista. Então, eu comecei a fazer muitos espetáculos. Como eu ganhei dois prêmios Shell, o prêmio APTR e dois prêmios Ubuntu como figurinista, muita gente até hoje acha que eu só faço figurino. E aí fui convidado para fazer muitos espetáculos como figurinista, mas em 2023 eu também passei a fazer muitos espetáculos em que assino o cenário e figurino – o que me encanta muito. Isso porque eu não tenho que me preocupar com entendimento do cenógrafo. Então, se eu sou o cenógrafo, eu já crio o cenário figurino naquele universo, e pra mim é muito importante, eu gosto muito, eu amo fazer isso.


Rodolfo Abreu: O teatro está sempre se reinventando. Como as novas tecnologias e materiais impactam seu trabalho na cenografia e no figurino? E como você traduz visualmente a essência de um personagem através do figurino?
Wanderley Gomes: Desde que comecei nessa companhia, com a Silvia e Tovar… eu sempre adorei isso, de trabalhar com material que não é tradicional. Eu adoro texturas, então eu misturo muitas coisas: tecido com plástico, com tampinhas, com metal… isso tudo veio desse trabalho, dessa admiração com Cláudio Tovar… Então o Gabriel Villela, de uma outra maneira, faz um trabalho meio barroco. E eu consegui, isso dito até pelo Tovar, misturar tudo isso e criar um estilo. Então hoje em dia muita gente reconhece… As pessoas falam “eu vi o figurino e sabia que tinha a sua assinatura”. E isso começa gerar uma satisfação muito grande, porque eu acho que realmente a criatividade tem que me desafiar e eu gosto de desafio. Estou sempre procurando, pesquisando. Eu gosto de misturar o plástico com brilho, com paetês… para ter uma linguagem diferente. Então é muito interessante quando eu vejo vários espetáculos que estão voltando, que estão em cartaz. Quando eu vejo “A Palavra que Resta” é um universo; quando eu vejo “Vozes Negras” é outro universo. “O Grande Sertão de Zé Ramalho” quando eu fiz, o que eu mais ouvi era assim: “Nossa, eu nunca vi um sertão com essas cores, com esse visual…” Porque… já que é Nordeste… então tanto o “Zé Ramalho” como “A Palavra que Resta” é um universo… Como eu sou da Paraíba, de uma cidade muito pequena chamada Sapé, onde vivi até os 18 anos, então toda a minha formação cultural vem de lá… que é muito rica no Nordeste… Minha formação foram todos aqueles caboclinhos, o pastorio, a lapinha, o reisado, o maracatu… tudo isso eu trago quando eu venho da Paraíba. Então quando eu fui chamado para fazer tanto o “Zé Ramalho” como “A Palavra que Resta”, a primeira coisa que eu pensei foi “não vou usar chitão, que é uma coisa que eu adoro, e não vou usar tecido cru”, porque aí eu caio no lugar comum. Então são espetáculos que eu tive que tingir muita roupa, que tive que aplicar muitos materiais para dar um Nordeste diferente. E isso eu tenho o maior prazer das pessoas virem falar isso… que é um Nordeste muito diferente. Então cada trabalho eu tento, na realidade, ter uma linguagem que tem uma assinatura já minha, mas que é um universo totalmente diferente do último espetáculo que eu fiz.

Rodolfo Abreu: Qual foi o projeto mais desafiador que você já criou e por quê?
Wanderley Gomes: O espetáculo mais desafiador que fiz foi “Vozes Negras”. Na realidade não é um único espetáculo, são seis. Cada semana estreava um. E está até para voltar no Teatro Adolfo Bloch, onde nós estreamos há três anos. Esses espetáculos a gente começava com a Rádio Nacional, depois íamos para o terreiro, onde nesta semana era Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara. Então tudo se passava no terreiro. Aí num terceiro espetáculo era sobre o samba… e aí vinha Alcione com Elza Soares. Também tinha o Samba Canção, que era Alaíde Costa com Dolores de Duran. Isso era incrível, porque tinham cenários diferentes, figurinos diferentes… só o coro é que tinha a mesma base, mas o universo era totalmente diferente. Depois tinha o pop que era Sandra de Sá e Margareth Menezes… isso numa linguagem totalmente diferente. E o último era Ludmilla, Tati Quebra-Barraco e a Isa, que era mais o funk. Então, de qualquer maneira, esse foi um espetáculo que me desafiou demais, porque cada semana estreava um espetáculo e nós ensaiamos tudo junto. Foi um grande desafio. Até hoje eu falo com Gustavo Gasparani, eu agradeço porque para um figurinista que estava despontando, que tinha ganhado o prêmio Shell, ele confiar esse projeto imenso de seis espetáculos, cada um, uma semana estreava, isso para mim foi muito desafiador. Ganhei todos os prêmios de figurino no Rio de Janeiro e me deixou muito forte. Eu jamais, hoje em dia, fico inseguro depois dessa prova de fogo. Acho que realmente eu consigo, que posso e tenho capacidade para fazer o que pintar pela frente.


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Entrevista por Rodolfo Abreu (@rodolfoabreu)
