Chico Vartulli – Olá Thais! Você está inaugurando a exposição “Entre o Aiyê e o Orun”. Qual é o tema central da mostra?
Thais Darzé – Entre o Aiyê e o Orun é uma exposição coletiva formada por 14 artistas que possuem poéticas relacionadas aos mitos africanos que permaneceram no Brasil e por essa razão moldaram em muitos aspectos a cultura brasileira. O Aiyê e o Orun estão em constante troca e integração, são palavras da língua iorubá, e as suas traduções significam mundo material (a terra) e mundo espiritual (o céu) respectivamente. Na cosmologia iorubá, a existência pode ser compreendida através destes dois níveis de mundo e universo. O Aiyê é o mundo humano, materializado, sentido, concreto e tocável, onde a natureza, os seres são produzidos e fiscalizados. Já o Orun está reservado para o intocável, ilimitado, transcendente, espaço dos Orixás e Eguns. Estes dois níveis se complementam e juntos produzem a harmonia necessária ao ato de existir.
As diversas versões do Mito da Criação do mundo e da humanidade na visão afro-brasileira conduzem a proposta conceitual da exposição Entre o Aiyê e o Orun. Nas sociedades tradicionais africanas, as narrativas orais são um traço dominante para transmissão
e preservação da sabedoria dos povos. Por essa razão, a pesquisa curatorial dessa mostra também considerou alguns relatos através da oralidade de membros de terreiros de diferentes nações, tais como Ketu, Angola e Jeje.
Chico Vartulli – Quais são as produções artísticas que serão exibidas?
Thais Darzé – São expostas obras em diversas linguagens, como fotografia, pintura, escultura e instalação, realizadas pelos artistas Agnaldo dos Santos, Ayrson Heráclito, Caetano Dias, Carybé, Emanoel Araujo, J. Cunha, Jayme Figura, José Adário dos Santos, Mario Cravo Junior, Mario Cravo Neto, Mestre Didi, Nádia Taquary, Pierre Verger e Rubem Valentim. Há ausências, não poucas, mas as exposições nunca são completas. Entre o Aiyê e o Orun pode ser vista apenas como uma iniciativa que pretende fomentar e construir novas narrativas num viés menos eurocêntrico da história da arte.
Chico Vartulli – Diversas exposições estao sendo inauguradas buscando evidenciar a produção artística afro-brasileira. Como você observa esse fato?
Thais Darzé – Em um país ainda profundamente marcado pelo racismo estrutural e por um baixo nível de letramento racial como o Brasil, ações culturais que valorizem e evidenciem a cultura afrodescendente são não apenas urgentes, mas essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e representativa. A mostra Entre o Aiyê e o Orun se inscreve nesse esforço coletivo de afirmação e visibilidade das cosmologias, estéticas e memórias negras, mas é fundamental lembrar que ela não nasce do acaso: é fruto de uma trajetória iniciada há oito anos com uma pesquisa comprometida politicamente e culturalmente engajada, a primeira montagem da exposição aconteceu em Salvador em 2018, com o propósito de fortalecer o protagonismo negro nas artes visuais e de tensionar narrativas hegemônicas que historicamente invisibilizaram essas vozes.
Chico Vartulli – Quais são as divindades afro-brasileiras que você destaca na exposição?
Thais Darzé – A expografia é estruturada em quatro atos, cada um concebido como um percurso simbólico e sensorial que conduz o público por diferentes dimensões da cosmologia afro-atlântica. O primeiro ato, Aiyê, convida à reflexão sobre o mundo material, a vida terrena e a ancestralidade encarnada nos corpos e territórios — é o espaço da memória, da presença e da existência. Em seguida, um núcleo é inteiramente dedicado a Exu, divindade fundamental por sua potência de comunicação, travessia e transformação, mas também por ter sido historicamente a mais demonizada pelos processos coloniais. Sua presença na exposição é um gesto de reparação simbólica e de reaproximação com seu sentido original, ritual e filosófico. O terceiro ato adentra o Orun, o mundo invisível dos orixás, voduns, nkisis e encantados — dimensão sagrada e intangível que rege a existência e escapa à lógica ocidental do visível e do mensurável. Por fim, o percurso culmina em um núcleo dedicado a Oxalá, o grande pai da criação, símbolo de origem e equilíbrio, cuja centralidade nos mitos da criação marca o encerramento da jornada como retorno ao princípio de tudo.
Chico Vartulli – Você é uma curadora preocupada com os legados da ancestralidade?
Thais Darzé – Sim, sou uma curadora profundamente comprometida com os legados da nossas múltiplas ancestralidades brasileiras— não apenas como herança a ser preservada, mas como força ativa que molda o presente e aponta caminhos para o futuro. Isso implicaria escutar as vozes silenciadas pela história oficial, criar espaços de visibilidade para as cosmologias, estéticas e epistemologias afro-indígenas, e construir narrativas que afirmem a multiplicidade da experiência humana. Se torna também um gesto ético e político: reconhecer que a curadoria é uma forma de mediação, e que mediar nossa ancestralidade é assumir a responsabilidade de honrar memórias, combater apagamentos e cultivar continuidade.
Chico Vartulli – Qual é a importância da obra de Pierre Verger?
Thais Darzé – A obra de Pierre Verger é de grande importância para a compreensão das conexões profundas entre a África e a diáspora afro-atlântica, especialmente no contexto brasileiro. Fotógrafo, etnógrafo e babalaô, Verger não apenas documentou com sensibilidade as práticas culturais, religiosas e cotidianas de comunidades negras na África Ocidental e no Brasil, mas também construiu pontes efetivas entre esses territórios. Sua obra fotográfica é ao mesmo tempo um registro histórico e um gesto poético, revelando a dignidade, a complexidade e a beleza de culturas frequentemente marginalizadas. Mais do que um observador externo, Verger tornou-se parte dos mundos que estudava: ao ser iniciado no culto de Ifá e viver em Salvador, sua prática ultrapassou os limites da antropologia tradicional, assumindo um caráter de vivência e pertencimento.
Chico Vartulli – Quais são os seus projetos futuros?
Thais Darzé – Atualmente, estou envolvida na elaboração de duas exposições individuais com artistas da nova geração, além de uma mostra coletiva que tem o protagonismo do feminino como eixo curatorial — projetos ainda em fase embrionária, mas que refletem minha preocupação com a renovação das narrativas e a ampliação de repertórios no campo da arte contemporânea. Paralelamente, dedico parte do meu tempo à futura publicação sobre a obra de Nadia Taquary, artista cuja trajetória acompanho de forma contínua. Como diretora da Paulo Darzé Galeria, estou à frente da programação anual, que inclui as próximas individuais de Daniel Jorge, Anderson Santos e Siron Franco. Na SP-Arte Rotas, a galeria apresentará um diálogo entre Nadia Taquary — que estará na Bienal de São Paulo — e Goya Lopes, além de um segundo espaço dedicado à produção em cerâmica do artista Almir Lemos, de Maragogipinho.
Imagens: Arquivo pessoal/Divulgação




