O texto de Cristina Flores é relacional, romântico, musical, contemporâneo, emocional, afetivo, sensível, libertador, embalado pelas músicas de Zélia Duncan e Lulu Santos, que narra a trajetória do casal Denise e Ulisses, personagens que reviram memórias, desmontam tabus e narram um processo comum a muitos: o de libertação e afirmação pessoal. O texto clama para os indivíduos saírem dos seus armários, dos seus esconderijos, sejam transparentes, e se libertem, batam suas asas e realizem os seus sonhos.
O texto é atravessado por bonitas canções de Zélia Duncan, cuja personagem Denise é uma grande admiradora, e de Lulu Santos, cujo personagem Ulisses, ex-namorado de Denise, é um grande admirador. As músicas desses dois cantores transformaram a vida dos dois personagens. Elas contribuíram para que eles saíssem do armário, se libertassem, assumissem as suas respectivas opções sexuais. A libertação é uma aceitação de si próprio e perante a sua própria comunidade. Eles passaram a partilhar uma identidade de interesses do grupo ao qual cada um pertence, e a ter consciência de que pertencem àquela comunidade específica.
Vale sublinhar que o texto teve o mérito de selecionar dois cantores da música popular brasileira, Zélia e Lulu, que, em momentos distintos de suas carreiras, assumiram publicamente que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+, impactando gerações de fãs, parte positivamente, outros “no susto”.
A libertação, o tornar público a sua opção sexual, a saída do esconderijo, também é uma forma de afrontar o patriarcalismo, instituição que ainda se faz presente em nossa sociedade, com suas variáveis machistas, racistas, homofóbicas, entre outras atitudes discriminatórias. Vale sublinhar que toda a equipe artística e técnica da peça é composta por profissionais LGBTQIAPN+.
Cristina Flores é a atriz principal da peça. Ela interpreta a personagem Denise, que sai do seu esconderijo e se liberta, despindo-se dos cadeados da heteronormatividade compulsória que sustentavam a sua homofobia internalizada. Ela tem uma atuação digna de elogios e aplausos. Ela é vibrante e contagiante. Ela interpreta com perfeição, canta com afinação e entonação, e emociona. Domina o texto, passando uma mensagem de amor, carinho e afetividade, e utilizando uma linguagem clara e acessível. Domina o palco, preenchendo todos os espaços e se movimentando intensamente. Estabelece uma boa comunicação com o público, convidando-o a cantar, inclusive indo à plateia e dando aos espectadores o microfone para interpretar a canção. Portanto, uma atuação deferida e merecedora de elogios.
Cristina Flores não está no palco sozinha. Ela é acompanhada ao vivo da musicista e atriz Angeliq Farnocchia, que canta bem, toca piano digital e também assina a potente direção musical, e do ator Felipe Maia. Os dois têm atuações corretas.
Por meio de projeções audiovisuais, visualizamos o ator Álamo Facó, que interpreta o ex-namorado da personagem Denise. As projeções têm também a participação de Rodrigo Nogueira, primo de Ulisses.
A direção é de Cristina Flores e Nara Parolini, que realizaram as marcações certeiras e precisas, e imprimiram no espetáculo a marca do sentimento e da emoção.
Os figurinos criados por Angela Camara são simples, adequados e expressam sensualidade.
A cenografia criada por Daniel Toledo, integrante do Coletivo opavivará!, é criativa e original. Ela tem como base a instalação Pornorama, obra de estética relacional, arte participativa. Ela é constituída por quatro nichos, com cortinas de veludo vermelho, e um globo de espelhos. No início do espetáculo, as cortinas estão fechadas. Aos poucos, a atriz vai abrindo cada uma delas. Até chegar ao fim, completamente abertas. As cortinas do teatro remetem às portas do armário, que também vão se abrindo, e de lá de dentro vão saindo todos aqueles que estão escondidos e vão se libertando.
A iluminação criada por Tomás Ribas é boa e de qualidade.
Há um casamento perfeito entre figurinos, cenografia e iluminação, formando um conjunto harmonioso e equilibrado.
Excelente produção de artes cênicas!


