O elemento negro foi introduzido na América portuguesa pelo colonizador branco para trabalhar como escravo no sistema monocultor. Pelas regiões coloniais, negros e negras eram vistos prestando os mais dolorosos serviços e recebendo os tratamentos mais desumanos possíveis. Como eram propriedade dos seus senhores, eram vistos por eles como uma coisa.
Ainda que a condição do escravizado fosse a de um objeto para o seu proprietário, os escravizados e as escravizadas não se calaram. Eles resistiram. Fugiam, formavam quilombos, organizavam rebeliões, cometiam suicídios, realizavam o culto aos orixás nas senzalas, lugares de dor, mas também onde conseguiam perpetuar suas ancestralidades, religar com a mãe África.
Passamos da condição de colônia a país independente, surgiu o Império do Brasil, que manteve a escravidão. Os escravizados eram um dos pilares de sustentação da monarquia, e quando a abolição extinguiu a escravidão, um ano e seis meses depois Dom Pedro II caiu.
Os negros e negras deixaram de ser escravizados, conseguiram a tão sonhada liberdade, mas tornaram-se de imediato cidadãos, incorporados plenamente a sociedade, e participando ativamente da vida política, social, econômica, cultural e educacional do nosso país?
O monólogo em tela trata exatamente dessa questão, do quanto a escravidão foi um elemento estruturador da sociedade brasileira, perpetuando a exclusão, a desigualdade, e, principalmente, o racismo contra a população negra.
O monólogo é estrelado pelo ator Clayton Nascimento, que também é o responsável pela direção e dramaturgia.
Clayton nos apresenta um texto-denúncia contra o racismo no Brasil. Denso, profundo, sério, instigante, ele sublinha o quanto a escravidão foi um elemento central para configurar a sociedade republicana brasileira, onde permanecem até os dias de hoje atitudes preconceituosas e racistas.
A violência ainda continua sendo praticada intensamente contra a população negra, sobretudo nas comunidades carentes, como no caso bastante explorado pela dramaturgia do filho de Teresinha de Jesus, que foi assassinado na porta de casa no Complexo do Alemão por agentes de segurança do Estado.
A dramaturgia deixa transparecer o quão difícil é para um homem ou uma mulher negra ter acesso em nosso país a educação, aos sistemas de saúde, aos órgãos de justiça, entre outros. O próprio ator exemplifica como foi árduo o seu processo de ingresso na Universidade de São Paulo (USP) para estudar artes cênicas. Tentou diversas vezes, até conseguir. Se formou, virou ator! E a pós-graduação? Outra batalha dura. Tentou várias vezes, até conseguir. Perseverou! Portanto, as oportunidades são desiguais.
Mas a dramaturgia também mencionou projetos negros que alcançaram êxito, como o Teatro Experimental do Negro (TEN), coordenado por Abdias do Nascimento, e integrado por uma constelação de estrelas negras como Ruth de Sousa, Léa Garcia, Haroldo Costa, entre outros. Inclusive eles encenaram suas produções cênicas no palco do Theatro Municipal.
Clayton tem êxito, pois num monólogo consegue manter a plateia sentada e atenta por quase três horas. Ele sabe se comunicar com o público, e torna o texto envolvente, emotivo e afetuoso. Passa a mensagem com clareza. Denuncia com precisão e exatidão.
O ponto negativo da dramaturgia reside na parte histórica, quando é narrado ao público o processo histórico de implantação do sistema de escravização do negro por aqui. Não somos especialistas em história da escravidão no Brasil. Contudo, há uma farta produção historiográfica sobre o tema, que não pode ser deixada de lado nem de ser mencionada. E a dramaturgia nesta parte deixa no ar algumas dúvidas e imprecisões históricas.
Como exemplo, numa determinada passagem da dramaturgia, Clayton afirmou que na cidade do Rio de Janeiro não tinha escravidão urbana. O Rio era capital, sede da Corte, uma das maiores concentrações de escravizados da América… enquanto São Paulo ainda era uma cidade pequena, o Rio já era a maior cidade do Brasil. Não faz sentido dizer que em São Paulo tinha escravidão urbana e no Rio, não.
Uma segunda imprecisão se deu quando houve uma confusão com a cronologia na parte em que o texto fala da Carlota Joaquina. Clayton diz que no ano de 1889 a França forçou Dom Pedro II a acabar com a escravidão e aparece Dona Carlota indo embora do Brasil…Não entendemos!
Ainda que a dramaturgia tenha apresentado esses deslizes, a produção cênica é maior do que isso. Os méritos são muito maiores do que os defeitos.
Clayton também é o diretor do espetáculo. Ele não trouxe nenhum elemento à cena, deixando apenas o palco, onde tudo acontece. Não há cenário algum. O figurino é simples, roupa comum, uma bermuda preta. O ator também carrega um batom, que lhe serve para passar no rosto e no peito. O foco está no texto e na elaboração do ator.
A iluminação de Danielle Meireles é simples, porém adequada, de bom gosto, cujas mudanças entram com bastante precisão em cada cena. Realça ainda mais o trabalho de Clayton.
E, para finalizar, está mais do que na hora de deixarmos de chamar seres humanos de macacos. Na Espanha ainda é moda! Sobretudo nos estádios de futebol. Vini Junior que o diga!
Ótima produção teatral!